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Cultura/Arte
CONVITE À FILOSOFIA-CULTURA/ARTE
Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
Unidade 8
O mundo da prática
Capítulo 1
A cultura
Natureza humana?
É muito comum ouvirmos e dizermos frases do tipo: “chorar é próprio da natureza humana” e “homem não chora”. Ou então: “é da natureza humana ter medo do desconhecido” e “ela é corajosa, não tem medo de nada”. Também é comum a frase: “as mulheres são naturalmente frágeis e sensíveis, porque nasceram para a maternidade”, bem como esta outra: “fulana é uma desnaturada, pois não tem o menor amor aos filhos”.
Com freqüência ouvimos dizer: “os homens são fortes e racionais, feitos para o comando e a vida pública”, donde, como conseqüência, esta outra frase: “fulana nem parece mulher. Veja como se veste! Veja o emprego que arranjou!”. Não é raro escutarmos que os negros são indolentes por natureza, os pobres são naturalmente violentos, os judeus são naturalmente avarentos, os árabes são naturalmente comerciantes espertos, os franceses são naturalmente interessados em sexo e os ingleses são, por natureza, fleumáticos.
Frases como essas, e muitas outras, pressupõem, por um lado, que existe uma natureza humana, a mesma em todos os tempos e lugares e, por outro lado, que existe uma diferença de natureza entre homens e mulheres, pobres e ricos, negros, índios, judeus, árabes, franceses ou ingleses. Haveria, assim, uma natureza humana universal e uma natureza humana diferenciada por espécies, à maneira da diferença entre várias espécies de plantas ou de animais.
Em outras palavras, a Natureza teria feito o gênero humano universal e as espécies humanas particulares, de modo que certos sentimentos, comportamentos, idéias e valores são os mesmos para todo o gênero humano (são naturais para todos os humanos), enquanto outros seriam os mesmos apenas para cada espécie (ou raça, ou tipo, ou grupo), isto é, para uma espécie determinada.
Dizer que alguma coisa é natural ou por natureza significa dizer que essa coisa existe necessária e universalmente como efeito de uma causa necessária e universal. Essa causa é a Natureza. Significa dizer, portanto, que tal coisa não depende da ação e intenção dos seres humanos. Assim como é da natureza dos corpos serem governados pela lei natural da gravitação universal, como é da natureza da água ser composta por H2O, ou como é da natureza da abelha produzir mel e da roseira produzir rosas, também seria por natureza que os homens sentem, pensam e agem. A Natureza teria feito a natureza humana como gênero universal e a teria diversificado por espécies naturais (brancos, negros, índios, pobres, ricos, judeus, árabes, homens, mulheres, alemães, japoneses, chineses, etc.).
Que aconteceria com as frases que mencionamos acima se mostrássemos que algumas delas são contraditórias e que outras não correspondem aos fatos da realidade?
Assim, por exemplo, dizer que “é natural chorar na tristeza” entra em contradição com a idéia de que “homem não chora”, pois, se isso fosse verdade, o homem teria que ser considerado algo que escapa das leis da Natureza, já que chorar é considerado natural. O mesmo acontece com a frase sobre o medo e a coragem: nelas é dito que o medo é natural, mas que uma certa pessoa é admirável porque não tem medo. Aqui, a contradição é ainda maior do que a anterior, uma vez que parecemos ter admiração por quem, misteriosamente, escapa da lei da Natureza, isto é, do medo.
Em certas sociedades, o sistema de alianças, que fundamenta as relações de parentesco sobre as quais a comunidade está organizada, exige que a criança seja levada, ao nascer, à irmã do pai, que deverá responsabilizar-se pela vida e educação da criança. Em outras, o sistema de parentesco exige que a criança seja entregue à irmã da mãe. Nos dois casos, a relação da criança é estabelecida com a tia por aliança e não com a mãe biológica. Se assim é, como fica a afirmação de que as mulheres amam naturalmente os seus filhos e que é desnaturada a mulher que não demonstrar esse amor?
Em certas sociedades, considera-se que a mulher é impura para lidar com a terra e com os alimentos. Por esse motivo, o cultivo da terra, a alimentação e a casa ficam sob os cuidados dos homens, cabendo às mulheres a guerra e o comando da comunidade. Se assim é, como fica a frase que afirma que o homem foi feito pela Natureza para o que exige força e coragem, para o comando e a guerra, enquanto a mulher foi feita pela Natureza para a maternidade, a casa, o trabalho doméstico, as atividades de um ser frágil e sensível?
Os historiadores brasileiros mostram que, por razões econômicas, a elite dominante do século XIX considerou mais lucrativo realizar a abolição da escravatura e substituir os escravos africanos pelos imigrantes europeus. Essa decisão fez com que o mercado de trabalho fosse ocupado pelos trabalhadores brancos imigrantes e que a maioria dos escravos libertados ficasse no desemprego, sem habitação, sem alimentação e sem qualquer direito social, econômico e político.
Em outras palavras, foram impedidos de trabalhar e foram mantidos sem direitos, tais como viviam quando estavam no cativeiro. Além disso, sabe-se que quando os colonizadores instituíram a escravidão e trouxeram os africanos para as terras da América, fizeram tal escolha por considerarem que os negros possuíam grande força física, grande capacidade de trabalho e muita inteligência para realizar tarefas com objetos técnicos como o engenho de açúcar. Se assim é, se a escravidão foi instituída por causa da grande capacidade e inteligência dos africanos para o trabalho da agricultura, se a abolição foi realizada por ser mais lucrativo o uso da mão-de-obra imigrante para um certo tipo de agricultura (o café) e para a indústria, como fica a afirmação de que a Natureza fez os africanos indolentes, preguiçosos e malandros?
Poderíamos examinar cada uma das frases que dizemos ou ouvimos em nosso cotidiano e que naturalizam os seres humanos, naturalizam comportamentos, idéias, valores, formas de viver e de agir. Veríamos como, em cada caso, os fatos desmentem tal naturalização. Veríamos como os seres humanos variam em conseqüência das condições sociais, econômicas, políticas, históricas em que vivem. Veríamos que somos seres cuja ação determina o modo de ser, agir e pensar e que a idéia de um gênero humano natural e de espécies humanas naturais não possui fundamento na realidade. Veríamos – graças às ciências humanas e à Filosofia – que a idéia de natureza humana como algo universal, intemporal e existente em si e por si mesma não se sustenta cientificamente, filosoficamente e empiricamente. Por quê? Porque os seres humanos são culturais ou históricos.
Culto, inculto: cultura
“Pedro é muito culto, conhece várias línguas, entende de arte e de literatura.”
“Imagine! É claro que o Luís não pode ocupar o cargo que pleiteia. Não tem cultura nenhuma. É semi-analfabeto!”
“Não creio que a cultura francesa ou alemã sejam superiores à brasileira. Você acha que há alguma coisa superior a nossa música popular?”
“Ouvi uma conferência que criticava a cultura de massa, mas me pareceu que a conferencista defendia a cultura de elite. Por isso, não concordei inteiramente com ela.”
“O livro de Silva sobre a cultura dos guaranis é bem interessante. Aprendi que o modo como entendem a religião e a guerra é muito diferente do nosso.”
Essas frases e muitas outras que fazem parte do nosso dia-a-dia indicam que empregamos a palavra cultura (ou seus derivados, como culto, inculto) em sentidos muito diferentes e, por vezes, contraditórios.
Na primeira e na segunda frase que mencionamos acima, cultura é identificada com a posse de certos conhecimentos (línguas, arte, literatura, ser alfabetizado). Nelas, fala-se em ter e não ter cultura, ser ou não ser culto. A posse de cultura é vista como algo positivo, enquanto “ser inculto” é considerado algo negativo. A segunda frase deixa entrever que “ter cultura” habilita alguém a ocupar algum posto ou cargo, pois “não ter cultura” significa não estar preparado para uma certa posição ou função. Nessas duas primeiras frases, a palavra cultura sugere também prestígio e respeito, como se “ter cultura” ou “ser culto” fosse o mesmo que “ser importante”, “ser superior”.
Ora, quando passamos à terceira frase, a cultura já não parece ser uma propriedade de um indivíduo, mas uma qualidade de uma coletividade – franceses, alemães, brasileiros. Também é interessante observar que a coletividade aparece como um adjetivo qualificativo para distinguir tipos de Cultura: a francesa, a alemã, a brasileira. Nessa frase, a Cultura surge como algo que existe em si e por si mesma e que pode ser comparada (Cultura superior, Cultura inferior).
Além disso, a Cultura aparece representada por uma atividade artística, a música popular. Isso permite estabelecer duas relações diferentes com as primeiras frases: 1. De fato, a terceira frase, como a primeira, identifica Cultura e artes (entender de arte e literatura, na primeira frase; a música popular brasileira, na terceira); 2. No entanto, algo curioso acontece quando passamos das duas primeiras frases à terceira. Com efeito, nas duas primeiras, “culto” e “inculto” surgiam como diferenças sociais. Num país como o nosso, dizer que alguém é inculto porque é semi-analfabeto deixa transparecer que Cultura é algo que pertence a certas camadas ou classes sociais socialmente privilegiadas, enquanto a incultura está do lado dos não-privilegiados socialmente, portanto, do lado do povo e do popular. Entretanto, a terceira frase afirma que a cultura brasileira não é inferior à francesa ou à alemã por causa de nossa música popular. Não estaríamos diante de uma contradição? Como poderia haver cultura popular (a música), se o popular é inculto?
Já a quarta frase (a que se refere à conferência sobre cultura de massa) introduz um novo significado para a palavra cultura. Nela não se trata mais de pessoas cultas ou incultas, nem de uma coletividade que possui uma atividade cultural que possa ser comparada à de outras. Agora, estamos diante da idéia de que numa mesma coletividade ou numa mesma sociedade pode haver dois tipos de Cultura: a de massa e a de elite. A frase não nos diz o que é a Cultura. (Seria posse de conhecimentos? Ou seria atividade artística?) Entretanto, a frase nos informa sobre uma oposição entre formas de cultura, dependendo de sua origem e de sua destinação, pois “cultura de massa” tanto pode significar “originada na massa” quanto “destinada à massa”, e o mesmo pode ser dito da “cultura de elite” (originada na elite ou destinada à elite).
Finalmente, a última frase que mencionamos como exemplo apresenta um sentido totalmente diverso dos anteriores no que toca à palavra cultura. Fala-se, agora, na cultura dos guaranis e esta aparece em duas manifestações: a guerra e a religião (que, portanto, nada tem a ver com a posse de conhecimentos, atividade artística, massa ou elite). Nessa última frase, a cultura aparece como algo dos guaranis – e como alguma coisa que não se limita ao campo dos conhecimentos e das artes, pois se refere à relação dos guaranis com o sagrado (a religião) e com o conflito e a morte (a guerra).
Vemos, assim, que passar da naturalização dos seres humanos à Cultura não resolve nossas dificuldades de compreensão dos humanos, uma vez que, agora, precisamos perguntar: Como é possível a palavra cultura possuir tantos sentidos, alguns deles contraditórios com outros?
Natureza e Cultura
No pensamento ocidental, Natureza possui vários sentidos:
● princípio de vida ou princípio ativo que anima e movimenta os seres. Nesse sentido, fala-se em “deixar agir a Natureza” ou “seguir a Natureza” para significar que se trata de uma força espontânea, capaz de gerar e de cuidar de todos os seres por ela criados e movidos. A Natureza é a substância (matéria e forma) dos seres;
● essência própria de um ser ou aquilo que um ser é necessária e universalmente. Neste sentido, a natureza de alguma coisa é o conjunto de qualidades, propriedades e atributos que a definem, é seu caráter ou sua índole inata, espontânea. Aqui, Natureza se opõe às idéias de acidental (o que pode ser ou deixar de ser) e de adquirido por costume ou pela relação com as circunstâncias;
● organização universal e necessária dos seres segundo uma ordem regida por leis naturais. Neste sentido, a Natureza se caracteriza pelo ordenamento dos seres, pela regularidade dos fenômenos ou dos fatos, pela freqüência, constância e repetição de encadeamentos fixos entre as coisas, isto é, de relações de causalidade entre elas. Em outros termos, a Natureza é a ordem e a conexão universal e necessária entre as coisas, expressas em leis naturais;
● tudo o que existe no Universo sem a intervenção da vontade e da ação humanas. Neste sentido, Natureza opõe-se a artificial, artefato, artifício, técnico e tecnológico. Natural é tudo quanto se produz e se desenvolve sem qualquer interferência humana;
● conjunto de tudo quanto existe e é percebido pelos humanos como o meio e o ambiente no qual vivem. A Natureza, aqui, tanto significa o conjunto das condições físicas onde vivemos, quanto aquelas coisas que contemplamos com emoção (a paisagem, o mar, o céu, as estrelas, terremotos, eclipses, tufões, erupções vulcânicas, etc.). A Natureza é o mundo visível como meio ambiente e como aquilo que existe fora de nós, mesmo que provoque idéias e sentimentos em nós;
● para as ciências contemporâneas, a Natureza não é apenas a realidade externa, dada e observada, percebida diretamente por nós, mas é um objeto de conhecimento construído pelas operações científicas, um campo objetivo produzido pela atividade do conhecimento, com o auxílio de instrumentos tecnológicos. Neste sentido, a Natureza, paradoxalmente, torna-se algo que passa a depender da interferência ou da intervenção humana, pois o objeto natural é construído cientificamente.
Esse último sentido da idéia de Natureza indica uma diferença entre a concepção comum e a científica, pois a primeira considera a Natureza nos cinco primeiros significados que apontamos, enquanto a segunda considera a Natureza como uma noção ou um conceito produzido pelos próprios homens e, nesse caso, como artifício, artefato, construção humana. Em outras palavras, a própria idéia de Natureza tornou-se um objeto cultural.
Mas, afinal, o que é a Cultura?
Dois são os significados iniciais da noção de Cultura:
1. vinda do verbo latino colere, que significa cultivar, criar, tomar conta e cuidar, Cultura significava o cuidado do homem com a Natureza. Donde: agricultura. Significava, também, cuidado dos homens com os deuses. Donde: culto. Significava ainda, o cuidado com a alma e o corpo das crianças, com sua educação e formação. Donde: puericultura (em latim, puer significa menino; puera, menina). A Cultura era o cultivo ou a educação do espírito das crianças para tornarem-se membros excelentes ou virtuosos da sociedade pelo aperfeiçoamento e refinamento das qualidades naturais (caráter, índole, temperamento);
2. a partir do século XVIII, Cultura passa a significar os resultados daquela formação ou educação dos seres humanos, resultados expressos em obras, feitos, ações e instituições: as artes, as ciências, a Filosofia, os ofícios, a religião e o Estado. Torna-se sinônimo de civilização, pois os pensadores julgavam que os resultados da formação-educação aparecem com maior clareza e nitidez na vida social e política ou na vida civil (a palavra civil vem do latim: cives, cidadão; civitas, a cidade-Estado).
No primeiro sentido, a Cultura é o aprimoramento da natureza humana pela educação em sentido amplo, isto é, como formação das crianças não só pela alfabetização, mas também pela iniciação à vida da coletividade por meio do aprendizado da música, dança, ginástica, gramática, poesia, retórica, história, Filosofia, etc. A pessoa culta era a pessoa moralmente virtuosa, politicamente consciente e participante, intelectualmente desenvolvida pelo conhecimento das ciências, das artes e da Filosofia. É este sentido que leva muitos, ainda hoje, a falar em “cultos” e “incultos”.
Podemos observar que neste primeiro sentido Cultura e Natureza não se opõem. Os humanos são considerados seres naturais, embora diferentes dos animais e das plantas. Sua natureza, porém, não pode ser deixada por conta própria, porque tenderá a ser agressiva, destrutiva, ignorante, precisando por isso ser educada, formada, cultivada de acordo com os ideais de sua sociedade. A Cultura é uma segunda natureza, que a educação e os costumes acrescentam à primeira natureza, isto é, uma natureza adquirida, que melhora, aperfeiçoa e desenvolve a natureza inata de cada um.
No segundo sentido, isto é, naquele formulado a partir do século XVIII, tem início a separação e, posteriormente, a oposição entre Natureza e Cultura. Os pensadores consideram, sobretudo a partir de Kant, que há entre o homem e a Natureza uma diferença essencial: esta opera mecanicamente de acordo com leis necessárias de causa e efeito, mas aquele é dotado de liberdade e razão, agindo por escolha, de acordo com valores e fins. A Natureza é o reino da necessidade causal, do determinismo cego. A humanidade ou Cultura é o reino da finalidade livre, das escolhas racionais, dos valores, da distinção entre bem e mal, verdadeiro e falso, justo e injusto, sagrado e profano, belo e feio.
À medida que este segundo sentido foi prevalecendo, Cultura passou a significar, em primeiro lugar, as obras humanas que se exprimem numa civilização, mas, em segundo lugar, passou a significar a relação que os humanos, socialmente organizados, estabelecem com o tempo e com o espaço, com os outros humanos e com a Natureza, relações que se transformam e variam. Agora, Cultura torna-se sinônimo de História. A Natureza é o reino da repetição; a Cultura, o da transformação racional; portanto, é a relação dos humanos com o tempo e no tempo.
Cultura e História
Foi Hegel e, depois dele, Marx que enfatizaram a Cultura como História. Para o primeiro, o tempo é o modo como o Espírito Absoluto ou a razão se manifesta e se desenvolve através das obras e instituições – religião, artes, ciências, Filosofia, instituições sociais, instituições políticas. A cada período de sua temporalidade, o Espírito ou razão engendra uma Cultura determinada, que exprime o estágio de desenvolvimento espiritual ou racional da humanidade – China, Índia, Egito, Israel, Grécia, Roma, Inglaterra, França, Alemanha seriam fases da vida do Espírito ou da razão, cada qual exprimindo-se com uma Cultura própria e ultrapassada pelas seguintes, num progresso contínuo.
Para Marx, há em Hegel um engano básico, qual seja, confundir a História-Cultura com a manifestação do Espírito. A História-Cultura é o modo como, em condições determinadas e não escolhidas, os homens produzem materialmente (pelo trabalho, pela organização econômica) sua existência e dão sentido a essa produção material. A História-Cultura não narra o movimento temporal do Espírito, mas as lutas reais dos seres humanos reais que produzem e reproduzem suas condições materiais de existência, isto é, produzem e reproduzem as relações sociais, pelas quais distinguem-se da Natureza e diferenciam-se uns dos outros em classes sociais antagônicas.
O movimento da História-Cultura é realizado pela luta das classes sociais para vencer formas de exploração econômica, opressão social, dominação política. Despotismo asiático, modo de produção antigo (Grécia, Roma), modo de produção feudal (Idade Média), capitalismo comercial ou mercantil, capitalismo industrial são as maneiras pelas quais surgem e se organizam as formações sociais, internamente divididas por lutas, cujo fim dependerá da capacidade de organização política e de consciência da última classe social explorada (o proletariado, produzido pelo capitalismo industrial) para eliminar a desigualdade e injustiça históricas.
Cultura e antropologia
Diferentemente de Hegel e Marx, que tomam a Cultura pela perspectiva histórica ou pela relação dos humanos com o tempo, a antropologia considera a Cultura por um outro prisma.
O antropólogo procura, antes de tudo, determinar em que momento e de que maneira os humanos se afirmam como diferentes da Natureza fazendo o mundo cultural surgir. Tradicionalmente, dizia-se que os humanos diferem da Natureza graças à linguagem e à ação por liberdade. O antropólogo, sem negar essa afirmação, procura algo mais profundo do que isso como início das culturas. Assim, para muitos antropólogos, a diferença homem-Natureza surge quando os humanos decretam uma lei que não poderá ser transgredida sem levar o culpado à morte, exigida pela comunidade: a lei da proibição do incesto, desconhecida pelos animais. Para muitos antropólogos, a diferença homem-Natureza também é estabelecida quando os humanos definem uma lei que, se transgredida, causa a ruína da comunidade e do indivíduo: a lei que separa o cru e o cozido, desconhecida dos animais.
Não vamos aqui entrar nos detalhes das discussões antropológicas. O importante, para nós, é perceber que os antropólogos buscam algo que demarque o momento da separação homem-Natureza como instante de surgimento da Cultura. Esse algo é uma regra ou norma humana que opera como lei universal, isto é, válida para todos os homens e para toda a comunidade.
A lei humana é um imperativo social que organiza toda a vida dos indivíduos e da comunidade, determinando o modo como são criados os costumes, como são transmitidos de geração em geração, como fundam as instituições sociais (religião, família, formas do trabalho, guerra e paz, distribuição das tarefas, formas do poder, etc.). A lei não é uma simples proibição para certas coisas e obrigação para outras, mas é a afirmação de que os humanos são capazes de criar uma ordem de existência que não é simplesmente natural (física, biológica). Esta ordem é a ordem simbólica.
Vimos que um símbolo é alguma coisa que se apresenta no lugar de outra e presentifica algo que está ausente. Quando dizemos que a Cultura é a invenção de uma ordem simbólica, estamos dizendo que nela e por ela os humanos atribuem à realidade significações novas por meio das quais são capazes de se relacionar com o ausente: pela palavra, pelo trabalho, pela memória, pela diferenciação do tempo (passado, presente, futuro), pela diferenciação do espaço (próximo, distante, grande, pequeno, alto, baixo), pela diferenciação entre o visível e o invisível (os deuses, o passado, o distante no espaço) e pela atribuição de valores às coisas e aos homens (bom, mau, justo, injusto, verdadeiro, falso, belo, feio, possível, impossível, necessário, contingente).
Comunicação (por palavras, gestos, sinais, escrita, monumentos), trabalho (transformação da Natureza), relação com o tempo e o espaço enquanto valores, diferenciação entre sagrado e profano, determinação de regras e normas para a realização do desejo, percepção da morte e doação de sentido a ela, percepção da diferença sexual e doação de sentido a ela, interdições e punição das transgressões, determinação da origem e da forma do poder legítimo e ilegítimo, criação de formas expressivas para a relação com o outro, com o sagrado e com o tempo (dança, música, rituais, guerra, paz, pintura, escultura, construção da habitação, culinária, tecelagem, vestuário, etc.) são as principais manifestações do surgimento da Cultura.
Em termos antropológicos, podemos, então, definir a Cultura como tendo três sentidos principais:
1. criação da ordem simbólica da lei, isto é, de sistemas de interdições e obrigações, estabelecidos a partir da atribuição de valores a coisas (boas, más, perigosas, sagradas, diabólicas), a humanos e suas relações (diferença sexual e proibição do incesto, virgindade, fertilidade, puro-impuro, virilidade; diferença etária e forma de tratamento dos mais velhos e mais jovens; diferença de autoridade e formas de relação com o poder, etc.) e aos acontecimentos (significado da guerra, da peste, da fome, do nascimento e da morte, obrigação de enterrar os mortos, proibição de ver o parto, etc.);
2. criação de uma ordem simbólica da linguagem, do trabalho, do espaço, do tempo, do sagrado e do profano, do visível e do invisível. Os símbolos surgem tanto para representar quanto para interpretar a realidade, dando-lhe sentido pela presença do humano no mundo;
3. conjunto de práticas, comportamentos, ações e instituições pelas quais os humanos se relacionam entre si e com a Natureza e dela se distinguem, agindo sobre ela ou através dela, modificando-a. Este conjunto funda a organização social, sua transformação e sua transmissão de geração a geração.
Em sentido antropológico, não falamos em Cultura, no singular, mas em culturas, no plural, pois a lei, os valores, as crenças, as práticas e instituições variam de formação social para formação social. Além disso, uma mesma sociedade, por ser temporal e histórica, passa por transformações culturais amplas e, sob esse aspecto, antropologia e História se completam, ainda que os ritmos temporais das várias sociedades não sejam os mesmos, algumas mudando mais lentamente e outras mais rapidamente.
A esse sentido histórico-antropológico amplo, podemos acrescentar um outro, restrito, ligado ao antigo sentido de cultivo do espírito: a Cultura como criação de obras da sensibilidade e da imaginação – as obras de arte – e como criação de obras da inteligência e da reflexão – as obras de pensamento. É esse segundo sentido que leva o senso comum a identificar Cultura e escola (educação formal), de um lado, e, de outro lado, a identificar Cultura e belas-artes (música, pintura, escultura, dança, literatura, teatro, cinema, etc.).
Se, porém, reunirmos o sentido amplo e o sentido restrito, compreenderemos que a Cultura é a maneira pela qual os humanos se humanizam por meio de práticas que criam a existência social, econômica, política, religiosa, intelectual e artística.
A religião, a culinária, o vestuário, o mobiliário, as formas de habitação, os hábitos à mesa, as cerimônias, o modo de relacionar-se com os mais velhos e os mais jovens, com os animais e com a terra, os utensílios, as técnicas, as instituições sociais (como a família) e políticas (como o Estado), os costumes diante da morte, a guerra, o trabalho, as ciências, a Filosofia, as artes, os jogos, as festas, os tribunais, as relações amorosas, as diferenças sexuais e étnicas, tudo isso constitui a Cultura como invenção da relação com o Outro.
Quem é o Outro? Antes de tudo, é a Natureza. A naturalidade é o Outro da humanidade. A seguir, os deuses, maiores do que os humanos, superiores e poderosos. Depois, os outros humanos, os diferentes de nós mesmos: os estrangeiros, os antepassados e os descendentes, os inimigos e os amigos, os homens para as mulheres, as mulheres para os homens, os mais velhos para os jovens, os mais jovens para os velhos, etc. Em sociedades como a nossa, divididas em classes sociais, o Outro é também a outra classe social, diferente da nossa, de modo que a divisão social coloca o Outro no interior da mesma sociedade e define relações de conflito, exploração, opressão, luta. Entre os inúmeros resultados da existência da alteridade (o ser um Outro) no interior da mesma sociedade, encontramos a divisão entre cultura de elite e cultura popular, cultura erudita e cultura de massa.
Estamos, agora, em condições de perceber por que as frases de nosso cotidiano sobre “cultos” e “incultos” indicam preconceitos e não conceitos. Que preconceitos?
● Aquele que ignora que, em sentido antropológico e histórico, todos os humanos são cultos, pois são todos seres culturais;
● Aquele que reduz a Cultura à escola e às belas-artes, sem se dar conta de que aquela e estas são efeito da vida cultural e um dos aspectos da Cultura, mas não toda a Cultura;
● Aquele que, partindo da Cultura como cultivo do espírito (obras de pensamento e obras de arte), ignora que a separação entre “cultos” e “incultos”, em sociedades divididas em classes sociais, é resultado de uma organização social que confere a alguns o direito de produção e acesso às obras, negando-o a outros, de tal maneira que, em lugar de um direito, tem-se, de um lado, privilégio e, de outro, exclusão. Em outras palavras, usa-se a Cultura como instrumento de discriminação social, econômica e política.
Novamente a História
Os estudiosos, partindo da filosofia da história e da antropologia, distinguem dois grandes tipos de cultura: a das comunidades e a das sociedades.
Uma comunidade é um grupo ou uma coletividade onde as pessoas se conhecem, tratam-se pelo primeiro nome, possuem contatos cotidianos cara a cara, compartilham os mesmos sentimentos e idéias e possuem um destino comum.
Uma sociedade é uma coletividade internamente dividida em grupos e classes sociais e na qual há indivíduos isolados uns dos outros. Seus membros não se conhecem pessoalmente nem intimamente. Cada classe social é antagônica à outra ou às outras, com valores e sentimentos diferentes e mesmo opostos. As relações não são pessoais, mas sociais, isto é, os indivíduos, grupos e classes se relacionam pela mediação de instituições como a família, a escola, a fábrica, o comércio, os partidos políticos e o Estado.
Os agrupamentos indígenas, por exemplo, são comunidades, portanto, internamente unos e indivisos. Em contrapartida, nós vivemos em sociedade e não em comunidade.
O tempo, nas comunidades, possui um ritmo lento, as transformações são raras e, em geral, causadas por um acontecimento externo que as afeta (por exemplo, a conquista e colonização branca imposta aos índios). Por isso, se diz que a comunidade está na História ou no tempo, mas não é histórica.
Ao contrário, a sociedade é histórica, ou seja, para ela as transformações são constantes e velozes, causadas pelas lutas e pelas divisões internas. Diz-se, então, que uma sociedade é histórica quando, para ela, ter uma história e estar no tempo são um problema, uma indagação que ela não cessa de responder. Por quê?
Uma comunidade baseia-se em mitos fundadores ou narrativas sobre sua origem e sobre o que nela aconteceu, acontece e acontecerá. Os mitos capturam o tempo e oferecem explicações satisfatórias para todos sobre o presente, o passado e o futuro.
Numa sociedade, porém, cada classe social procura explicar a origem da sociedade e de suas mudanças e, conseqüentemente, há diferentes explicações para o surgimento, a forma e a transformação sociais. Os grupos dominantes narram a história da sociedade de modo diferente e oposto à narrativa dos grupos dominados.
A classe que domina e a que é dominada possuem, portanto, concepções diferentes e contrárias sobre as causas dos acontecimentos, não havendo uma explicação única e idêntica para todos sobre a origem da sociedade e suas transformações. Eis, por que, para uma sociedade, ser histórica é um problema e não uma solução. Em outras palavras, enquanto o mito unifica o tempo comunitário, as histórias sociais multiplicam as interpretações sobre as causas e os efeitos temporais.
Finalmente, uma comunidade cria a mesma Cultura para todos os seus membros, mas numa sociedade isso não é possível, e as diferentes classes sociais produzem culturas diferentes e mesmo antagônicas. Por esse motivo é que as sociedades conhecem um fenômeno inexistente nas comunidades: a ideologia. Esta é resultado da imposição da cultura dos dominantes à sociedade inteira, como se todas as classes e todos os grupos sociais pudessem e devessem ter a mesma Cultura, embora vivendo em condições sociais diferentes.
A ideologia é uma das maneiras pelas quais as sociedades históricas buscam oferecer a imagem de uma única Cultura e de uma única história, ocultando a divisão social interna.
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Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
Unidade 8
O mundo da prática
Capítulo 2
A experiência do sagrado e a instituição da religião
A Filosofia e as manifestações culturais
A Filosofia se interessa por todas as manifestações culturais, pois, como escreveu o filósofo Montaigne, “nada do que é humano me é estranho”.
Os principais campos filosóficos relativos às manifestações culturais são: a filosofia das ciências (que vimos na teoria do conhecimento), da religião, das artes, da existência ética e da vida política. Além disso, a Filosofia ocupa-se também com a crítica das ideologias que se originam na vida política, mas se estendem para todas as manifestações da Cultura.
O sagrado
O sagrado é uma experiência da presença de uma potência ou de uma força sobrenatural que habita algum ser – planta, animal, humano, coisas, ventos, água, fogo. Essa potência é tanto um poder que pertence própria e definitivamente a um determinado ser, quanto algo que ele pode possuir e perder, não ter e adquirir. O sagrado é a experiência simbólica da diferença entre os seres, da superioridade de alguns sobre outros, do poderio de alguns sobre outros, superioridade e poder sentidos como espantosos, misteriosos, desejados e temidos.
A sacralidade introduz uma ruptura entre natural e sobrenatural, mesmo que os seres sagrados sejam naturais (como a água, o fogo, o vulcão): é sobrenatural a força ou potência para realizar aquilo que os humanos julgam impossível efetuar contando apenas com as forças e capacidades humanas. Assim, por exemplo, em quase todas as culturas, um guerreiro, cuja força, destreza e invencibilidade são espantosas, é considerado habitado por uma potência sagrada. Um animal feroz, astuto, veloz e invencível também é assim considerado. Por sua forma e ação misteriosas, benévolas e malévolas, o fogo é um dos principais entes sagrados. Em regiões desérticas, a sacralização concentra-se nas águas, raras e necessárias.
O sagrado opera o encantamento do mundo, habitado por forças maravilhosas e poderes admiráveis que agem magicamente. Criam vínculos de simpatia-atração e de antipatia-repulsão entre todos os seres, agem à distância, enlaçam entes diferentes com laços secretos e eficazes.
Todas as culturas possuem vocábulos para exprimir o sagrado como força sobrenatural que habita o mundo. Assim, nas culturas da Polinésia e da Melanésia, a palavra que designa o sagrado é mana (e suas variantes). Nas culturas das tribos norte-americanas, fala-se em orenda (e suas variantes), referindo-se ao poder mágico possuído por todas as coisas, dando-lhes vida, vontade e ação, força que se pode roubar de outras coisas para si, que se pode perder quando roubada por outros seres, que se pode impor a outros mais fracos.
Entre as culturas dos índios sul-americanos, o sagrado é designado por palavras como tunpa e aigres. Nas africanas, há centenas de termos, dependendo da língua e da relação mantida com o sobrenatural, mas o termo fundamental, embora com variantes de pronúncia, é ntu, “força universal em que coincidem aquilo que é e aquilo que existe”.
Na cultura hebraica, dois termos designavam o sagrado: qados e herem, significando aqueles seres ou coisas que são separados por Deus para seu culto, serviço, sacrifício, punição, não podendo ser tocados pelo homem. Assim a Arca da Aliança, onde estavam guardados os textos sagrados, era qados e, portanto, intocável. Também os prisioneiros de uma guerra santa pertenciam a Deus, sendo declarados herem. Na cultura grega, agnos (puro) e agios (intocável), e na romana, sacer (dedicado à divindade) e sanctus (inviolável) constituem a esfera do sagrado.
Sagrado é, pois, a qualidade excepcional – boa ou má, benéfica ou maléfica, protetora ou ameaçadora – que um ser possui e que o separa e distingue de todos os outros, embora, em muitas culturas, todos os seres possuam algo sagrado, pelo que se diferenciam uns dos outros.
O sagrado pode suscitar devoção e amor, repulsa e ódio. Esses sentimentos suscitam um outro: o respeito feito de temor. Nasce, aqui, o sentimento religioso e a experiência da religião.
A religião pressupõe que, além do sentimento da diferença entre natural e sobrenatural, haja o sentimento da separação entre os humanos e o sagrado, mesmo que este habite os humanos e a Natureza.
A religião
A palavra religião vem do latim: religio, formada pelo prefixo re (outra vez, de novo) e o verbo ligare (ligar, unir, vincular). A religião é um vínculo. Quais as partes vinculadas? O mundo profano e o mundo sagrado, isto é, a Natureza (água, fogo, ar, animais, plantas, astros, metais, terra, humanos) e as divindades que habitam a Natureza ou um lugar separado da Natureza.
Nas várias culturas, essa ligação é simbolizada no momento de fundação de uma aldeia, vila ou cidade: o guia religioso traça figuras no chão (círculo, quadrado, triângulo) e repete o mesmo gesto no ar (na direção do céu, ou do mar, ou da floresta, ou do deserto). Esses dois gestos delimitam um espaço novo, sagrado (no ar) e consagrado (no solo). Nesse novo espaço ergue-se o santuário (em latim, templum, templo) e à sua volta os edifícios da nova comunidade.
Essa mesma cerimônia da ligação fundadora aparece na religião judaica, quando Jeová indica ao povo o lugar onde deve habitar – a Terra Prometida – e o espaço onde o templo deverá ser edificado, para nele ser colocada a Arca da Aliança, símbolo do vínculo que une o povo e seu Deus, recordando a primeira ligação: o arco-íris, anunciado por Deus a Noé como prova de seu laço com ele e sua descendência.
Também no cristianismo a religio é explicitada por um gesto de união. No Novo Testamento, Jesus disse a Pedro: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as Chaves do Reino: o que ligares na Terra será ligado no Céu; o que desligares na Terra será desligado no Céu”.
Através da sacralização e consagração, a religião cria a idéia de espaço sagrado. Os céus, o monte Olimpo (na Grécia), as montanhas do deserto (em Israel), templos e igrejas são santuários ou moradas dos deuses. O espaço da vida comum separa-se do espaço sagrado: neste, vivem os deuses, são feitas as cerimônias de culto, são trazidas oferendas e feitas preces com pedidos às divindades (colheita, paz, vitória na guerra, bom parto, fim de uma peste); no primeiro transcorre a vida profana dos humanos. A religião organiza o espaço e lhe dá qualidades culturais, diversas das simples qualidades naturais.
A religião como narrativa da origem
A religião não transmuta apenas o espaço. Também qualifica o tempo, dando-lhe a marca do sagrado.
O tempo sagrado é uma narrativa. Narra a origem dos deuses e, pela ação das divindades, a origem das coisas, das plantas, dos animais e dos seres humanos. Por isso, a narrativa religiosa sempre começa com alguma expressão do tipo: “no princípio”, “no começo”, “quando o deus x estava na Terra”, “quando a deusa y viu pela primeira vez”, etc.
A narrativa sagrada é a história sagrada, que os gregos chamavam de mito. Este não é uma fabulação ilusória, uma fantasia sem consciência, mas a maneira pela qual uma sociedade narra para si mesma seu começo e o de toda a realidade, inclusive o começo ou nascimento dos próprios deuses. Só tardiamente, quando surgiu a Filosofia e, depois dela, a teologia, a razão exigirá que os deuses não sejam apenas imortais, mas também eternos, sem começo e sem fim. Antes, porém, da Filosofia e da teologia, a religião narrava teogonias (do grego: theos, deus; gonia, geração) isto é, a geração ou o nascimento dos deuses, semideuses e heróis.
O contraste entre dia e noite – luz e treva -, entre as estações do ano – frio, quente, ameno, com flores, com frutos, com chuvas, com secas -, entre o nascimento e a desaparição – vida e morte -, entre tipos de animais – terrestres, aquáticos, voadores, ferozes e dóceis -, entre tipos de humanos – brancos, negros, amarelos, vermelhos, altos, baixos, peludos, glabros -, as técnicas obtidas pelo controle sobre alguma força natural – fogo, água, ventos, pedras, areia, ervas – evidenciam um mundo ordenado e regular, no qual os humanos nascem, vivem e morrem. A história sagrada ou mito narra como e por que a ordem do mundo existe e como e por que foi doada aos humanos pelos deuses. Assim, além de ser uma teogonia, a história sagrada é uma cosmogonia (do grego: cosmos, mundo; gonia, geração): narra o nascimento, a finalidade e o perecimento de todos os seres sob a ação dos deuses.
Assim como há dois espaços, há dois tempos: o anterior à criação ou gênese dos deuses e das coisas – tempo do vazio e do caos – e o tempo originário da gênese de tudo quanto existe – tempo do pleno e da ordem. Nesse tempo sagrado da ordem, novamente uma divisão: o tempo primitivo, inteiramente divino, quando tudo foi criado, e o tempo do agora, profano, em que vivem os seres naturais, incluindo os homens.
Embora a narrativa sagrada seja uma explicação para a ordem natural e humana, ela não se dirige ao intelecto dos crentes (não é Filosofia nem ciência), mas se endereça ao coração deles. Desperta emoções e sentimentos – admiração, espanto, medo, esperança, amor, ódio.
Porque se dirige às paixões do crente, a religião lhe pede uma só coisa: fé, ou seja, a confiança, adesão plena ao que lhe é manifestado como ação da divindade. A atitude fundamental da fé é a piedade: respeito pelos deuses e pelos antepassados. A religião é crença, não é saber. A tentativa para transformar a religião em saber racional chama-se teologia.
Ritos
Porque a religião liga humanos e divindade, porque organiza o espaço e o tempo, os seres humanos precisam garantir que a ligação e a organização se mantenham e sejam sempre propícias. Para isso são criados os ritos.
O rito é uma cerimônia em que gestos determinados, palavras determinadas, objetos determinados, pessoas determinadas e emoções determinadas adquirem o poder misterioso de presentificar o laço entre os humanos e a divindade. Para agradecer dons e benefícios, para suplicar novos dons e benefícios, para lembrar a bondade dos deuses ou para exorcizar sua cólera, caso os humanos tenham transgredido as leis sagradas, as cerimônias ritualísticas são de grande variedade.
No entanto, uma vez fixada a simbologia de um ritual, sua eficácia dependerá da repetição minuciosa e perfeita do rito, tal como foi praticado na primeira vez, porque nela os próprios deuses orientaram gestos e palavras dos humanos. Um rito religioso é repetitivo em dois sentidos principais: a cerimônia deve repetir um acontecimento essencial da história sagrada (por exemplo, no cristianismo, a eucaristia ou a comunhão, que repete a Santa Ceia); e, em segundo lugar, atos, gestos, palavras, objetos devem ser sempre os mesmos, porque foram, na primeira vez, consagrados pelo próprio deus. O rito é a rememoração perene do que aconteceu numa primeira vez e que volta a acontecer, graças ao ritual que abole a distância entre o passado e o presente.
Os objetos simbólicos
A religião não sacraliza apenas o espaço e o tempo, mas também seres e objetos do mundo, que se tornam símbolos de algum fato religioso.
Os seres e objetos simbólicos são retirados de seu lugar costumeiro, assumindo um sentido novo para toda a comunidade – protetor, perseguidor, benfeitor, ameaçador. Sobre esse ser ou objeto recai a noção de tabu (palavra polinésia que significa intocável): é um interdito, ou seja, não pode ser tocado nem manipulado por ninguém que não esteja religiosamente autorizado para isso.
É assim, por exemplo, que certos animais se tornam sagrados ou tabus, como a vaca na Índia, o cordeiro perfeito consagrado para o sacrifício da páscoa judaica, o tucano para a nação tucana, do Brasil. É assim, por exemplo, que certos objetos se tornam sagrados ou tabus, como o pão e o vinho consagrados pelo padre cristão, durante o ritual da missa. Do mesmo modo, em inúmeras religiões, as virgens primogênitas das principais famílias se tornam tabus, como as vestais, na Roma antiga. Também objetos se tornam símbolos sagrados intocáveis, como os pergaminhos judaicos contendo os textos sagrados antigos, certas pedras usadas pelos chefes religiosos africanos, etc.
Os tabus se referem ou a objetos e seres puros ou purificados para os deuses, ou a objetos e seres impuros, que devem permanecer afastados dos deuses e dos humanos. É assim que, em inúmeras culturas, a mulher menstruada é tabu (está impura) e, no judaísmo e no islamismo, a carne de porco é tabu (é impura).
A religião tende a ampliar o campo simbólico, mesmo que não transforme todos os seres e objetos em tabus ou intocáveis. Ela o faz, vinculando seres e qualidades à personalidade de um deus. Assim, por exemplo, em muitas religiões, como as africanas, cada divindade é protetora de um astro, uma cor, um animal, uma pedra e um metal preciosos, um objeto santo.
A figuração do sagrado se faz por emblemas: assim, por exemplo, o emblema da deusa Fortuna era uma roda, uma vela enfunada e uma cornucópia; o da deusa Atena, o capacete e a espada; o de Hermes, a serpente e as botas aladas; o de Oxossi, as sete flechas espalhadas pelo corpo; o de Iemanjá, o vestido branco, as águas do mar e os cabelos ao vento; o de Jesus, a cruz, a coroa de espinhos, o corpo glorioso em ascensão.
Manifestação e revelação
Há religiões em que os deuses se manifestam: surgem diante dos homens em beleza, esplendor, perfeição e poder e os levam a ver uma outra realidade, escondida sob a realidade cotidiana, na qual o espaço, o tempo, as formas dos seres, os sons e as cores, os elementos encontram-se organizados e dispostos de uma outra maneira, secreta e verdadeira. A divindade, levando um humano ao seu mundo, desvenda-lhe a verdade e o ilumina com sua luz.
Era isso, como vimos, o que significava a palavra grega aletheia, a verdade como manifestação ou iluminação. A iluminação pode ser terrível, porque é dado a um humano ver o que os olhos humanos não conseguem ver, ouvir o que os ouvidos humanos não podem ouvir, conhecer o que a inteligência humana não tem forças para conhecer. As religiões indígenas e a grega são desse tipo.
Há religiões em que o deus revela verdades aos humanos, sem fazê-los sair de seu mundo. Podem ter sonhos e visões, mas o fundamento é ouvir o que a divindade lhes diz, porque dela provém o sentido primeiro e último de todas coisas e do destino humano. O que se revela não é a verdade do mundo, através da viagem visionária a um outro mundo: o que se revela é a vontade do deus, na qual o crente confia e cujos desígnios ele cumpre. Era isso o que significava, como vimos, a palavra hebraica emunah, “assim seja”. Judaísmo, cristianismo e islamismo são religiões da revelação.
Nas duas modalidades de religião, porém, a manifestação da verdade e a revelação da vontade exprimem o mesmo acontecimento: aos humanos é dado conhecer seu destino e o de todas as coisas, isto é, as leis divinas.
A lei divina
Os deuses são poderes misteriosos. São forças personificadas e por isso são vontades. Misteriosos, porque suas decisões são imprevisíveis e, muitas vezes, incompreensíveis para os critérios humanos de avaliação. Vontades, porque o que acontece no mundo manifesta um querer pessoal, supremo e inquestionável. A religião, ao estabelecer o laço entre o humano e o divino, procura um caminho pelo qual a vontade dos deuses seja benéfica e propícia aos seus adoradores.
A vontade divina pode tornar-se parcialmente conhecida dos humanos sob a forma de leis, isto é, decretos, mandamentos, ordenamentos, comandos emanados da divindade. Assim como a ordem do mundo decorre dos decretos divinos, isto é, da lei ordenadora à qual nenhum ser escapa, também o mundo humano está submetido a mandamentos divinos, dos quais os mais conhecidos, na cultura ocidental, são os Dez Mandamentos, dados por Jeová a Moisés. Também são de origem divina as Doze Tábuas da Lei que fundaram a república romana, como eram de origem divina as leis gregas explicitadas na Ilíada e na Odisséia de Homero, bem como nas tragédias.
O modo como a vontade divina se manifesta em leis permite distinguir dois grandes tipos de religião. Há religiões em que a divindade usa intermediários para revelar a lei. É o caso da religião judaica, em que Jeová se vale, por exemplo, de Noé, Moisés, Samuel, para dar a conhecer a lei. Também nessa religião, a divindade não cessa de lembrar ao povo as leis, sobretudo quando estão sendo transgredidas. Essa rememoração da lei e das promessas de castigo e redenção nelas contidas é a tarefa do profeta, arauto de Deus. Também na religião grega, os deuses se valem de intermediários para manifestar sua vontade. Esta, por ser misteriosa e incompreensível, exige um tipo especial de intermediário, o vidente, que interpreta os enigmas divinos, vê o passado e o futuro e os expõe aos homens.
Há religiões, porém, em que os deuses manifestam sua lei diretamente, sem recorrer a intermediários, isto é, sem precisar de intérpretes. São religiões da iluminação individual e do êxtase místico, como é o caso da maioria das religiões orientais, que exigem, para a iluminação e o êxtase, uma educação especial do intelecto e da vontade dos adeptos.
Freqüentemente, profetas e videntes entram em transe para receber a revelação, mas a recebem não porque tenham sido educados para isso e sim porque a divindade os escolheu para manifestar-se. O transe dos profetas e dos adivinhos difere do êxtase místico dos iluminados, porque, nos primeiros, o indivíduo tem acesso a um conhecimento que pode compreender (mesmo com grande dificuldade) e por isso pode transmiti-lo aos outros, enquanto nos segundos, não há conhecimento, não há atividade intelectual que depois seja transmissível a outros, mas há mergulho e fusão do indivíduo na divindade, numa experiência intraduzível e intransmissível.
As religiões reveladas – diferentes, portanto, das religiões extáticas – realizam a revelação de duas maneiras: numa delas, como é o caso da judaica e da cristã, aquele que recebe a revelação deve escrevê-la, para que integre os textos da história sagrada e seja transmissível; na outra, como é o caso da grega, da romana, das africanas, das indígenas, o vidente é levado perante os deuses e vê a totalidade do tempo e dos acontecimentos, devendo, após a visão, dizê-la, para integrá-la à memória religiosa oral. Nos dois casos, porém, para que fique indiscutível a origem divina da revelação, a exposição escrita ou oral só pode ser feita por parábolas, metáforas, imagens e histórias, cujo sentido precisará ser decifrado pelos leitores ou ouvintes. Deus, profetas e videntes falam por meio de enigmas. Dessa maneira, o caráter transcendente e misterioso da lei divina é preservado.
A vida após a morte
Toda religião explica não só a origem da ordem do mundo natural, mas também do mundo humano. No caso dos humanos, a religião precisa explicar por que são mortais. O mistério da morte é sempre explicado como expiação de uma culpa original, cometida contra os deuses. No princípio, os homens eram imortais e viviam na companhia dos deuses; a seguir, uma transgressão imperdoável tem lugar e, com ela, a grande punição: a mortalidade.
No entanto, a imortalidade não está totalmente perdida. Algumas religiões afirmam que o corpo humano possui um duplo, feito de outra matéria, que permanecerá após a morte, usando outros seres para relacionar-se com os vivos. Certas religiões acreditam que o corpo é habitado por uma entidade – espírito, alma, sombra imaterial, sopro -, que será imortal se os decretos divinos e os rituais tiverem sido respeitados pelo fiel. Por acreditarem firmemente numa outra vida – que pode ser imediata, após a morte do corpo, ou pode exigir reencarnações purificadoras até alçar-se à imortalidade -, as religiões possuem ritos funerários, encarregados de preparar e garantir a entrada do morto na outra vida.
Em algumas religiões, como na egípcia e na grega, a perfeita preservação do corpo morto, isto é, de sua imagem, era essencial para que fosse reconhecido pelos deuses no reino dos mortos e recebesse a imortalidade. Por isso, além dos ritos funerários, os cemitérios, na maioria das religiões e particularmente nas africanas, indígenas e antigas ocidentais, eram lugares sagrados, campos santos, nos quais somente alguns, e sob certas condições, podiam penetrar.
Nas religiões do encantamento, como a grega, as africanas e as indígenas, a morte é concebida de diversas maneiras, mas em todas elas o morto fica encantado, isto é, torna-se algo mágico. Numa delas, o morto deixa seu corpo para entrar num outro e permanecer no mundo, sob formas variadas; ou deixa seu corpo e seu espírito permanecer no mundo, agitando os ventos, as águas, o fogo, ensinando canto aos pássaros, protegendo as crianças, ensinando os mais velhos, escondendo e achando coisas. Na outra, o morto tem sua imagem ou seu espírito levado ao mundo divino, ali desfrutando das delícias de uma vida perenemente perfeita e bela; se, porém, suas faltas terrenas forem tantas e tais que não pôde ser perdoado, sua imagem ou espírito vagará eternamente pelas trevas, sem repouso e sem descanso. O mesmo lhe acontecerá se os rituais fúnebres não puderem ser realizados ou se tiverem sido realizados com falhas. Esse perambular pelas trevas não existe nas religiões de reencarnação, porque, em lugar dessa punição, o espírito deverá ter tantas vidas e sob tantas formas quantas necessárias à sua purificação, até que possa participar da felicidade perene.
Nas religiões da salvação, como é o caso do judaísmo, do cristianismo e do islamismo, a felicidade perene não é apenas individual, mas também coletiva. São religiões em que a divindade promete perdoar a falta originária, enviando um salvador, que, sacrificando-se pelos humanos, garante-lhes a imortalidade e a reconciliação com Deus.
Como a falta ou queda originária atingiu a todos os humanos, o perdão divino e a redenção decorrem de uma decisão divina, que deverá atingir a todos os humanos, se acreditarem e respeitarem a lei divina escrita nos textos sagrados e se guardarem a esperança na promessa de salvação que lhes foi feita por Deus. Nesse tipo de religião, a obra de salvação é realizada por um enviado de Deus – messias, em hebraico; cristo, em grego. As religiões da salvação são messiânicas e coletivas. Um povo – povo de Deus – será salvo pela lei e pelo enviado divino.
Milenarismo
O milenarismo é próprio das religiões da salvação. É a esperança da felicidade perene no mundo, quando, após sofrimentos profundos, os seres forem regenerados, purificados e libertados pela divindade.
O termo milenarismo provém de uma crença popular cristã, embora não seja exclusivo da religião cristã. Baseados em profecias dos profetas Daniel e Isaías, no Apocalipse de são João, e nas predições de magos e sibilas, grupos populares cristãos, durante a Idade Média, esperavam que Cristo voltasse pela segunda vez, combatesse os males – a peste, a fome, a guerra e a morte -, vencesse o demônio, encarnado num governante perverso, o Anti-Cristo, e instituísse o reino de Deus na Terra, com a duração de mil anos de abundância, justiça e felicidade. Ao fim de mil anos, haveria a ressurreição dos mortos, o Juízo Final e o fim do mundo terreno.
Outras religiões e outros grupos culturais humanos possuem religiões milenaristas, isto é, a esperança de um fim dos tempos, quando a dor, a miséria, a injustiça e a maldade terminarão e a plena felicidade existirá para todos. É assim que os índios guaranis, do Paraguai e do Brasil, acreditam na Terra sem Males, que surgirá além dos mares, depois que a Terra, cansada e infeliz, for atravessada por eles e o deus, benévolo e clemente, lhes der a terra nova, onde as flechas voarão sozinhas para trazer a caça e a pesca, os frutos encherão as cestas, não haverá frio nem chuva, nem guerra nem morte.
O milenarismo, em outra forma, está presente numa concepção religiosa católica do século XX, a Teologia da Libertação, desenvolvida nos anos 70, na América Latina, e que propunha o retorno da Igreja à pureza igualitária, livre e justa dos primeiros cristãos, criando o reino de Deus na Terra, conforme prometido por Jesus.
Todas as religiões são experiências de fé, mas as religiões da salvação (messiânicas) são religiões da fé e da esperança. O milenarismo exprime, no grau mais alto, a esperança religiosa das religiões da salvação. No caso do milenarismo cristão, a esperança volta-se para a existência futura de uma sociedade não hierarquizada, igualitária e justa; por esse motivo, foi considerado, pela ortodoxia cristã, uma heresia, isto é, um pecado contra a fé estabelecida pela doutrina cristã, segundo a qual o reino de Deus já existe na Terra, desde a ressurreição de Cristo: é a Igreja.
A esperança milenarista é própria das classes populares, em sociedades onde prevalecem a desigualdade, a injustiça, a exclusão e a miséria.
O bem e o mal
As religiões ordenam a realidade segundo dois princípios fundamentais: o bem e o mal (ou a luz e a treva, o puro e o impuro).
Sob esse aspecto, há três tipos de religiões: as politeístas, em que há inúmeros deuses, alguns bons, outros maus, ou até mesmo cada deus podendo ser ora bom, ora mau; as dualistas, nas quais a dualidade do bem e do mal está encarnada e figurada em duas divindades antagônicas que não cessam de combater-se; e as monoteístas, em que o mesmo deus é tanto bom quanto mau, ou, como no caso do judaísmo, do cristianismo e do islamismo, a divindade é o bem e o mal provém de entidades demoníacas, inferiores à divindade e em luta contra ela.
No caso do politeísmo e do dualismo, a divisão bem-mal não é problemática, assim como não o é nas religiões monoteístas que não exigem da divindade comportamentos sempre bons, uniformes e homogêneos, pois a ação do deus é insondável e incompreensível. O problema, porém, existe no monoteísmo judaico-cristão e islâmico.
Com efeito, a divindade judaico-cristã e islâmica é definida teologicamente como um ser positivo ou afirmativo: Deus é bom, justo, misericordioso, clemente, criador único de todas as coisas, onipotente e onisciente, mas, sobretudo, eterno e infinito. Deus é o ser perfeito por excelência, é o próprio bem e este é eterno como Ele. Se o bem é eterno e infinito, como surgiu sua negação, o mal? Que positividade poderia ter o mal, se, no princípio, havia somente Deus, eterna e infinitamente bom? Admitir um princípio eterno e infinito para o mal seria admitir dois deuses, incorrendo no primeiro e mais grave dos pecados, pois tanto os Dez Mandamentos quanto o Credo cristão afirmam haver um só e único Deus.
Além disso, Deus criou todas as coisas do nada; tudo o que existe é, portanto, obra de Deus. Se o mal existe, seria obra de Deus? Porém, Deus sendo o próprio bem, poderia criar o mal? Como o perfeito criaria o imperfeito? Qual é, pois, a origem do mal? A criatura.
Deus criou inteligências imateriais perfeitas, os anjos. Dentre eles, surgem alguns que aspiram a ter o mesmo poder e o mesmo saber que a divindade, lutando contra ela. Menos poderosos e menos sábios, são vencidos e expulsos da presença divina. Não reconhecem, porém, a derrota. Formam um reino separado, de caos e trevas, prosseguem na luta contra o Criador. Que vitória maior teriam senão corromper a mais alta das criaturas após os anjos, isto é, o homem? Valendo-se da liberdade dada ao homem, os anjos do mal corrompem a criatura humana e, com esta, o mal entra no mundo.
O mal é o pecado, isto é, a transgressão da lei divina que o primeiro homem e a primeira mulher praticaram. Sua punição foi o surgimento dos outros males: morte, doença, dor, fome, sede, frio, tristeza, ódio, ambição, luxúria, gula, preguiça, avareza. Pelo mal, a criatura afasta-se de Deus, perde a presença divina e a bondade original que possuía.
O mal, portanto, não é uma força positiva de mesma realidade que o bem, mas é pura ausência do bem, pura privação do bem, negatividade, fraqueza. Assim como a treva não é algo positivo, mas simples ausência da luz, assim também o mal é pura ausência do bem. Há um só Deus e o mal é estar longe e privado dele, pois Ele é o bem e o único bem.
A falta
Há religiões da exterioridade e da interioridade. Nas primeiras, a falta ou pecado é uma ação externa visível, cometida voluntária ou involuntariamente contra a divindade. A falta é irreverência, sentida sob a forma de vergonha, trazendo como conseqüência uma impureza que contamina o faltoso e o grupo, exigindo rituais de purificação.
Nas religiões da interioridade, como é o caso do cristianismo, a falta ou pecado é uma ação interna invisível (mesmo que resulte num ato externo visível), causada por uma vontade má – nesse caso, a falta é um crime – ou por um entendimento equivocado – nesse caso, a falta é um erro. É uma transgressão experimentada na forma de culpa, exigindo expiação.
Nas religiões da exterioridade, o perdão depende exclusivamente de uma graça, isto é, a divindade pode ou não perdoar, independentemente dos rituais de purificação realizados pelo indivíduo ou pelo grupo. Nas religiões da interioridade, o perdão – que virá na forma de graça – exige uma experiência interior precisa, o arrependimento.
Nas religiões da exterioridade – como a grega, a romana, as africanas e indígenas -, a falta é causada por uma fatalidade. O fatum (destino, em latim; fado, em português) ou a moira (destino fatal, em grego) determinou desde sempre que ela seria cometida por alguém, para desgraça sua e de seu grupo. A falta não depende da vontade do agente, mas de uma decisão divina. É assim, por exemplo, que Édipo cumprirá seu destino.
Nas religiões da interioridade – como é o caso do judaísmo e do cristianismo -, a falta nasce da liberdade do agente, que, conhecendo o bem e o mal (a lei divina), transgride consciente e voluntariamente o decreto de Deus. Sem dúvida, para o cristianismo, a falta é um problema teológico insolúvel, pois o Deus cristão é onipotente e onisciente, sabendo tudo desde a eternidade e, portanto, conhecendo previamente o pecador. Se pune o pecado, mas sabia que seria cometido, não seria injusto por não impedir que seja cometido? Se conhece eternamente quem pecará, não será Deus como o fatum e a moira? E como falar na liberdade e no livre-arbítrio do pecador, se desde a eternidade Deus sabia que ele cometeria o pecado?
Imanência e transcendência
Quando estudamos o sagrado, vimos que, em inúmeras culturas, os seres e objetos sacros habitam o nosso mundo, são imanentes a ele. As primeiras experiências religiosas são por isso panteístas (theos, em grego, significa deus; pan, em grego, significa todos, tudo), ou seja, nelas tudo são deuses e estes estão em toda a parte, espalhados pela Natureza. Os seres tomam parte na divindade, motivo pelo qual possuem mana, orenda e tunpa. O ntu africano exprime a concepção da imanência panteísta.
Ao contrário das religiões panteístas ou da imanência dos deuses no mundo, as religiões teístas são transcendentes, isto é, os deuses estão separados do mundo natural e humano, vivem noutro mundo e agem sobre o nosso. É assim, por exemplo, que os deuses gregos, embora tenham forma humana, vivem no monte Olimpo, e Jeová, que possui atributos humanos (como a voz), vive no monte Sinai. Eis por que, nas religiões da transcendência, fala-se na visitação dos deuses para referir-se aos momentos em que, nos rituais, comunicam-se com os seres humanos.
Nas várias religiões da transcendência, a visitação divina não é problemática porque os deuses possuem formas materiais – animais, como na religião egípcia, humanas, como nas religiões grega e romana. A visitação é um problema na religião cristã, porque o Deus cristão é duas vezes misterioso e totalmente diferente das formas existentes no mundo: em primeiro lugar, é constituído por três pessoas que são uma só; em segundo lugar, é eterno, incorpóreo, infinito, pleno e perfeito. Donde o caráter totalmente incompreensível e terrível da encarnação de Jesus Cristo, pois como explicar que uma das pessoas da Trindade se separe das outras para vir habitar entre os homens e que um ente eterno, imaterial e infinito tome a forma material, mortal, finita, carente e imperfeita do humano?
Para superar as dificuldades, o cristianismo fala na visitação de Deus através dos anjos e santos, e na inspiração do Espírito Santo, enviado pelo Pai.
Transcendência e hierarquia
Vimos que, pela lei divina, é instituída a ordem do mundo natural e humano. Vimos também que o conhecimento dessa lei tende a tornar-se um conhecimento especial, seja porque somente alguns são escolhidos para conhecê-la, seja porque o texto da lei é incompreensível e exige pessoas capazes de fazer a interpretação (profetas e videntes), seja ainda porque a própria interpretação é obscura e exige novos intérpretes.
Constatamos que o conhecimento da lei e da vontade divinas são essenciais para a narrativa da história sagrada e para a realização correta e eficaz dos ritos. Como conseqüência, as religiões tendem a instituir um grupo de indivíduos, separados do restante da comunidade, encarregados de transmitir a história sagrada, interpretar a lei e os sinais divinos, realizar os ritos e marcar o espaço-tempo sagrados.
Magos, astrólogos, videntes, profetas, xamãs, sacerdotes e pajés possuem saberes e poderes especiais. São capazes de curar, de prever o futuro, de aplacar a cólera dos deuses, de anunciar a vontade divina, de destruir a distância (por meio de palavras e gestos). Inicialmente, sua função é trazer o sagrado para o grupo e aí conservá-lo. Pouco a pouco, porém, formam um grupo separado, uma classe social, com exigências e poderes próprios, privam a comunidade da presença direta do sagrado e distorcem a função originária que possuíam, transformando-a em domínio e poder sobre a comunidade. Tornam-se os portadores simbólicos do sagrado e mediadores indispensáveis.
A religião, como já observamos, realiza o encantamento do mundo, explicando-o pelo maravilhoso e misterioso. O grupo que detém o saber misterioso, ao tornar-se detentor do poder, possui o poder mais alto: o de encantar, desencantar e reencantar o mundo. Por isso, num primeiro momento, o poder religioso concentra-se nas mãos de um só, que possui também a autoridade militar e o domínio econômico sobre toda a comunidade.
À medida que as relações sociais se tornam mais complexas, com divisões sociais do trabalho e da propriedade, o poder passa por uma divisão: um grupo detém a autoridade religiosa e outro, a militar e econômica. Porém, todo o saber da comunidade – história sagrada, interpretação da lei divina, rituais – encontra-se nas mãos da autoridade religiosa, que passa, dessa maneira, a ser o braço intelectual e jurídico indispensável da autoridade econômica e militar.
Nas religiões da transcendência, três são as conseqüências principais desse desenvolvimento histórico:
1. a formação de uma autoridade que detém o privilégio do saber, porque conhece a vontade divina e suas leis. Com ela, surge a instituição sacerdotal e eclesiástica. Não por acaso, Cícero dirá que a palavra religião vem do verbo legere, ler. Os sacerdotes são intelectuais. O grupo sacerdotal detém vários saberes: o da história sagrada, o dos rituais, o das leis divinas, pelas quais é imposta a moralidade ao grupo. Como esses saberes se referem ao divino, constituem a teologia. Os sacerdotes, ou uma parte deles, são teólogos. Tais saberes lhes dão os seguintes poderes:
● mágico: são os únicos que conhecem e sabem manipular os vínculos secretos entre as coisas;
● divinatório: são os únicos capazes de prever os acontecimentos pela interpretação dos astros, de sinais e das entranhas dos animais;
● propiciatório: são os únicos capazes de realizar os ritos de maneira correta e adequada para obtenção dos favores divinos;
● punitivo: são os únicos que conhecem as leis divinas e podem punir os transgressores ou infiéis.
2. a formulação de uma doutrina religiosa baseada na idéia de hierarquia, isto é, de uma realidade organizada sob a forma de graus superiores e inferiores onde se situam todos os seres, por vontade divina. Os entes se distinguem por sua proximidade ou distância dos deuses, segundo o lugar hierárquico, fixo e imutável, que lhes foi destinado.
Assim, por exemplo, certas religiões podem considerar certos animais mais próximos dos deuses, sendo por isso mais poderosos, mais sábios e melhores do que todos os outros entes. Algumas podem considerar as entidades imateriais superiores e as materiais ou corporais, inferiores. Outras podem considerar os humanos o grau mais alto da hierarquia, todos os outros seres estando subordinados a eles e devendo-lhes obediência.
Nas religiões politeístas, a hierarquia começa pelos próprios deuses, havendo deuses superiores e inferiores. Nas religiões monoteístas, a hierarquia coloca a divindade no topo de uma escala e os demais seres são ordenados segundo sua maior ou menor semelhança com ela. Assim, por exemplo, no cristianismo, há uma hierarquia celeste (anjos, arcanjos, querubins, serafins, tronos, potestades e os santos) e uma hierarquia terrestre (homens, animais, plantas, minerais), estando abaixo dela os demônios e as trevas. A noção de hierarquia introduz as noções de superior e inferior, definindo a relação entre ambos pelo mando e a obediência. Dessa maneira, a religião organiza o mundo e, com isso, a sociedade. Evidentemente, os que se ocupam com as coisas sagradas estão no topo da hierarquia humana e todos os outros lhes devem obediência.
3. o privilégio do uso da violência sagrada para punir os faltosos ou pecadores. Inicialmente, exigia-se que todos os membros da comunidade fossem piedosos, isto é, respeitassem deuses, tabus, rituais e a memória dos antepassados. Com o surgimento da classe sacerdotal, passa-se a exigir que esses membros da comunidade – os sacerdotes – sejam castos, isto é, possuam integridade corporal e espiritual para oficiar os ritos e interpretar as leis. Na qualidade de castos, são os mais puros e por isso investidos, após educação e iniciação, do poder de purificação. Detêm o poder judiciário.
Nas religiões da interioridade, como é o caso do cristianismo, o privilégio judiciário e da violência sagrada é exercido não só sobre o corpo e o comportamento dos fiéis, mas sobretudo sobre as almas. Como isso é possível?
No caso do catolicismo, por exemplo, isso é feito por meio de dois procedimentos principais. Em primeiro lugar, por meio da confissão das faltas ou dos pecados, feita perante o sacerdote que tem o poder para perdoar ou absolver, mediante o arrependimento do pecador e das penitências que lhe são impostas.
Há um código ético-religioso que determina quais são os pecados (pecados mortais, pecados veniais, pecados capitais), quais os modos de pecar (por ato, palavras e intenções), qual o dano causado ao pecador e quais as penitências que deve cumprir. O pecador faz um exame de consciência, confessa ao sacerdote, tornando visível (por palavras) os segredos de sua alma e entrega-se à misericórdia de Deus, representado pelo sacerdote que pune e perdoa.
O segundo procedimento é o exame sacerdotal das idéias e das opiniões dos fiéis.
De fato, o saber religioso cristão está consignado num texto – a Escritura Sagrada – e num conjunto de textos interpretativos do primeiro – a teologia racional -, formando a doutrina cristã. Parte dessa doutrina é constituída por verdades reveladas compreensíveis para a razão humana, parte é constituída por verdades reveladas incompreensíveis para a inteligência humana. Essas últimas verdades constituem os dogmas da fé e não podem ser questionadas. Questioná-las ou propor-lhes um conteúdo ou significado diferentes do estabelecido pela doutrina é considerado pecado mortal. Isso significa que a transgressão religiosa pode ocorrer através do pensamento ou das idéias. É a heresia (palavra grega que significa opinião discordante).
A instituição sacerdotal tem o poder para punir heresias e o faz por três caminhos: a excomunhão (o fiel é banido da comunidade dos crentes e prometido à punição eterna), a obtenção da confissão de arrependimento do herege (em geral, obtida por meio de tortura) ou a condenação à morte.
Assim, o sagrado dá origem à religião, enquanto a sociedade faz aparecer o poder teológico da autoridade religiosa.
As finalidades da religião
A invenção cultural do sagrado se realiza como processo de simbolização e encantamento do mundo, seja na forma da imanência do sobrenatural no natural, seja na transcendência do sobrenatural. O sagrado dá significação ao espaço, ao tempo e aos seres que neles nascem, vivem e morrem.
A passagem do sagrado à religião determina as finalidades principais da experiência religiosa e da instituição social religiosa. Dentre essas finalidades destacamos:
● proteger os seres humanos contra o medo da Natureza, nela encontrando forças benéficas, contrapostas às maléficas e destruidoras;
● dar aos humanos um acesso à verdade do mundo, encontrando explicações para a origem, a forma, a vida e a morte de todos os seres e dos próprios humanos;
● oferecer aos humanos a esperança de vida após a morte, seja sob a forma de reencarnação perene, seja sob a forma de reencarnação purificadora, seja sob a forma de imortalidade individual, que permite o retorno do homem ao convívio direto com a divindade, seja sob a forma de fusão do espírito do morto no seio da divindade. As religiões da salvação, tanto as de tipo judaico-cristão quanto as de tipo oriental, prometem aos seres humanos libertá-los da pena e da dor da existência terrena;
● oferecer consolo aos aflitos, dando-lhes uma explicação para a dor, seja ela física ou psíquica;
● garantir o respeito às normas, às regras e aos valores da moralidade estabelecida pela sociedade. Em geral, os valores morais são estabelecidos pela própria religião, sob a forma de mandamentos divinos, isto é, a religião reelabora as relações sociais existentes como regras e normas, expressões da vontade dos deuses ou de Deus, garantindo a obrigatoriedade da obediência a elas, sob a pena de sanções sobrenaturais.
Críticas à religião
As primeiras críticas à religião feitas no pensamento ocidental vieram dos filósofos pré-socráticos, que criticaram o politeísmo e o antropomorfismo. Em outras palavras, afirmaram que, do ponto de vista da razão, a pluralidade dos deuses é absurda, pois a essência da divindade é a plenitude infinita, não podendo haver senão uma potência divina.
Declararam também absurdo o antropomorfismo, uma vez que este reduz os deuses à condição de seres super-humanos, isto é, as qualidades da essência divina não podem confundir-se com as da natureza humana. Essas críticas foram retomadas e sistematizadas por Platão, Aristóteles e pelos estóicos.
Uma outra crítica à religião foi feita pelo grego Epicuro e retomada pelo latino Lucrécio. A religião, dizem eles, é fabulação ilusória, nascida do medo da morte e da Natureza. É superstição. No século XVII, o filósofo Espinosa retoma essa crítica, mas em lugar de começar pela religião, começa pela superstição. Os homens, diz ele, têm medo dos males e esperança de bens. Movidos pelas paixões (medo e esperança), não confiam em si mesmos nem nos conhecimentos racionais para evitar males e conseguir bens.
Passional ou irracionalmente, depositam males e bens em forças caprichosas, como a sorte e a fortuna, e as transformam em poderes que os governam arbitrariamente, instaurando a superstição. Para alimentá-la, criam a religião e esta, para conservar seu domínio sobre eles, institui o poder teológico-político. Nascida do medo supersticioso, a religião está a serviço da tirania, tanto mais forte quanto mais os homens forem deixados na ignorância da verdadeira natureza de Deus e das causas de todas as coisas.
Essa diferença entre religião e verdadeiro conhecimento de Deus levou, no século XVIII, à idéia de religião natural ou deísmo. Voltando-se contra a religião institucionalizada como poder eclesiástico e poder teológico-político, os filósofos da Ilustração afirmaram a existência de um Deus que é força e energia inteligente, imanente à Natureza, conhecido pela razão e contrário à superstição.
Observamos, portanto, que as críticas à religião voltam-se contra dois de seus aspectos: o encantamento do mundo, considerado superstição; e o poder teológico-político institucional, considerado tirânico.
No século XIX, o filósofo Feuerbach criticou a religião como alienação. Os seres humanos vivem, desde sempre, numa relação com a Natureza e, desde muito cedo, sentem necessidade de explicá-la, e o fazem analisando a origem das coisas, a regularidade dos acontecimentos naturais, a origem da vida, a causa da dor e da morte, a conservação do tempo passado na memória e a esperança de um tempo futuro. Para isso, criam os deuses. Dão-lhes forças e poderes que exprimem desejos humanos. Fazem-nos criadores da realidade. Pouco a pouco, passam a concebê-los como governantes da realidade, dotados de forças e poderes maiores do que os humanos.
Nesse movimento, gradualmente, de geração a geração, os seres humanos se esquecem de que foram os criadores da divindade, invertem as posições e julgam-se criaturas dos deuses. Estes, cada vez mais, tornam-se seres onipotentes, oniscientes e distantes dos humanos, exigindo destes culto, rito e obediência. Tornam-se transcendentes e passam a dominar a imaginação e a vida dos seres humanos. A alienação religiosa é esse longo processo pelo qual os homens não se reconhecem no produto de sua própria criação, transformando-o num outro (alienus), estranho, distante, poderoso e dominador. O domínio da criatura (deuses) sobre seus criadores (homens) é a alienação.
A análise de Feuerbach foi retomada por Marx, de quem conhecemos a célebre expressão: “A religião é o ópio do povo”. Com essa afirmação, Marx pretende mostrar que a religião – referindo-se ao judaísmo, ao cristianismo e ao islamismo, isto é, às religiões da salvação – amortece a combatividade dos oprimidos e explorados, porque lhes promete uma vida futura feliz. Na esperança de felicidade e justiça no outro mundo, os despossuídos, explorados e humilhados deixam de combater as causas de suas misérias neste mundo.
Todavia, Marx fez uma outra afirmação que, em geral, não é lembrada. Disse ele que “a religião é lógica e enciclopédia popular, espírito de um mundo sem espírito”. Que significam essas palavras?
Com elas, Marx procurou mostrar que a religião é uma forma de conhecimento e de explicação da realidade, usadas pelas classes populares – lógica e enciclopédia – para dar sentido às coisas, às relações sociais e políticas, encontrando significações – o espírito no mundo sem espírito -, que lhes permitem, periodicamente, lutar contra os poderes tirânicos. Marx tinha na lembrança as revoltas camponesas e populares durante a Reforma Protestante, bem como na Revolução Inglesa de 1644, na Revolução Francesa de 1789, e nos movimentos milenaristas que exprimiram, na Idade Média, e no início dos movimentos socialistas, a luta popular contra a injustiça social e política.
Se por um lado na religião há a face opiácea do conformismo, há, por outro lado, a face combativa dos que usam o saber religioso contra as instituições legitimadas pelo poder teológico-político.
Mythos e logos
Na maioria das culturas, a religião se apresenta como sistema explicativo geral, oferecendo causas e efeitos, relações entre seres, valores morais e também sustentação ao poder político. Nela se efetiva uma visão de mundo única, válida para toda a sociedade e fornecendo a seus membros uma comunidade de ação e de destino.
No caso da cultura ocidental, porém, a religião tornou-se apenas mais um sistema explicativo da realidade, entre outros. A ruptura com o mythos, efetuada pelo surgimento e desenvolvimento do logos, isto é, do pensamento racional, desfez o privilégio da religião como visão de mundo única. Filosofia e ciência elaboraram explicações cujos princípios são completamente diferentes dos da religião.
Vimos as principais características do pensamento filosófico e quando a Filosofia nasce na Grécia. Vimos também os traços que constituem o ideal científico. Diante dessas duas formas de conhecimento, o mito se apresenta como radicalmente distinto. Embora isso já tenha sido analisado anteriormente (veja-se sobretudo a Unidade 4, capítulos 5 e 6), vamos recapitular essa distinção:
● mythos – é uma fala, um relato ou uma narrativa, cujo tema principal é a origem (origem do mundo, dos homens, das técnicas, dos deuses, das relações entre homens e deuses, etc.);
● não se define pelo objeto da narrativa ou do relato, mas pelo modo como narra ou pelo modo como profere a mensagem, de sorte que qualquer tema e qualquer ser podem ser objeto de mito: tornam-se míticos ao se transformarem em valores e símbolos sagrados;
● tem como função resolver, num plano simbólico e imaginário, as antinomias, as tensões, os conflitos e as contradições da realidade social que não podem ser resolvidas ou solucionadas pela própria sociedade, criando, assim, uma segunda realidade, que explica a origem do problema e o resolve de modo que a realidade possa continuar com o problema sem ser destruída por ele. O mito cria uma compensação simbólica e imaginária para dificuldades, tensões e lutas reais tidas como insolúveis;
● consegue essa solução imaginária porque opera com a lógica invisível e subjacente à organização social. Ou seja, conflitos, tensões, lutas e antinomias não são visíveis e perceptíveis, mas invisíveis e imperceptíveis, comandando o funcionamento visível da organização social. O mito se refere a esse fundo invisível e tenso e o resolve imaginariamente para garantir a permanência da organização. Além de ser uma lógica da compensação, é uma lógica da conservação do social, instrumento para evitar a mudança e a desagregação do grupo. Em outras palavras, é elaborado para ocultar a experiência da História ou do tempo;
● não é apenas efeito das causas sociais, mas torna-se causa também, isto é, uma vez elaborado, passa a produzir efeitos sociais: instituições, comportamentos, sentimentos, etc. É uma ação social com efeitos sociais;
● ultrapassa as fronteiras da sociedade onde foi suscitado, pois sua explicação visa a exprimir estruturas universais do espírito humano e do mundo. Assim, por exemplo, os mitos teogônicos e cosmogônicos concernentes à proibição do incesto, embora referentes às necessidades internas de uma sociedade para a elaboração das leis de parentesco e do sistema de alianças, ressurge em todas as sociedades, exprimindo uma estrutura universal da Cultura;
● revela uma estrutura inconsciente da sociedade, de tal modo que é possível distinguir a estrutura inconsciente universal e as mensagens particulares que cada sociedade inventa para resolver as tensões e os conflitos ou contradições inconscientes. O mito conta uma história dramática, na qual a ordem do mundo (o reino mineral, vegetal, animal e humano) foi criada e constituída.
Os acontecimentos narrados exprimem, simultaneamente, uma estrutura geral do pensamento humano e uma solução parcial que uma sociedade determinada encontrou para o problema. Assim, a diferença homem-vegetal, homem-animal, homem-mulher, vida-morte, treva-luz é uma diferença que atormenta universalmente todas as culturas, mas cada uma delas possui uma narrativa mítica específica para responder a esse tormento;
● comparado ao discurso filosófico e científico, o discurso mítico opera, segundo Lévi-Strauss, pelo mecanismo do bricolage, isto é, assim como alguém junta pedaços e partes de objetos antigos para fazer um objeto novo, no qual se podem perceber as partes ou pedaços dos objetos anteriores, assim também o mythos constrói sua narrativa, não como o logos, elaborando de ponta a ponta seu objeto como algo específico, mas como um arranjo e uma construção com pedaços de narrativas já existentes.
O logos busca a coerência, construindo conceitualmente seu objeto, enquanto o mythos fabrica seu objeto pela reunião e composição de restos díspares e disparatados do mundo existente, dando-lhes unidade num novo sistema explicativo, no qual adquirem significado simbólico. O logos procura a unidade sob a diversidade e a multiplicidade; o mythos faz exatamente o oposto, isto é, procura a multiplicidade e a diversidade sob a unidade. É um pensamento empírico e concreto, e não um pensamento conceitual e abstrato;
● comparado ao discurso filosófico e científico, o mito se mostra uma operação lingüística oposta ao logos. Este purifica a linguagem dos elementos qualitativos e emotivos, busca retirar tanto quanto possível a ambigüidade dos termos que emprega, utilizando provas, demonstrações e argumentos racionais. O mito, ao contrário, opera por metaforização contínua, isto é, um mesmo significante (palavra ou conjunto de palavras) tenderá a possuir um número imenso de significações ou de sentidos.
O mito opera com a saturação do sentido, ou seja, um mesmo fato pode ser narrado de inúmeras maneiras diferentes, dependendo do que se queira enfatizar, e as coisas do mundo (minerais, vegetais, animais, humanos) podem receber inúmeros sentidos, conforme o lugar que ocupem na narrativa. Assim, a oposição vida-morte, homem-mulher, humano-animal, luz-treva, quente-frio, seco-úmido, bom-mau, justo-injusto, certo-errado, grande-pequeno, cru-cozido, pai-mãe, irmã-irmão, pai-filho, pai-filha, mãe-filho, mãe-filha, etc. serão oposições constantes e regulares em todos os mitos, mas os conteúdos que as exprimem são inumeráveis.
Ao instaurar a ruptura entre mythos e logos, a cultura ocidental provocou um acontecimento desconhecido em outras culturas: o conflito entre a fé e a razão, que se manifestou desde muito cedo. Já na Grécia antiga, as críticas de Heráclito, Pitágoras e Xenófanes à religião assinalavam a ruptura com ela. Mais tarde, Atenas forçou o filósofo Anaxágoras a fugir para evitar a condenação pública, acusado pelo tribunal ateniense de “inventar um novo deus”; Sócrates, julgado culpado de impiedade e de corrupção da juventude, foi condenado à morte.
Na Renascença, Giordano Bruno, que afirmara a imanência da Inteligência infinita ao mundo (“o Uno é forma e matéria, figura da Natureza inteira, operando de seu interior”, dizia ele), foi condenado à fogueira. Galileu, na época moderna, foi forçado a abjurar suas teses sobre o movimento solar, as manchas lunares e solares e o princípio da inércia, fundamento da mecânica clássica.
Nem sempre a Filosofia abandonou os temas da religião. Todavia, ocupou-se deles do ponto de vista do logos e não do mythos. Assim procedendo, despojou-os de sua condição de mistérios para transformá-los em conceitos e teorias. Para a alma religiosa, há um Deus; para a Filosofia, é preciso provar a existência da divindade. Para a alma piedosa, Deus é um ente perfeito, bom e misericordioso, mas justo, punindo os maus e recompensando os bons. Para a Filosofia, Deus é uma substância infinita, mas é preciso demonstrar que sua essência é constituída por um intelecto onisciente e uma vontade onipotente.
Para o crente, a espiritualidade divina não é incompatível com a esperança de poder ver Deus atuar materialmente sobre o mundo, realizando milagres; para a Filosofia, é preciso demonstrar a possibilidade de uma ação do espírito sobre a matéria e por que, sendo Deus onisciente, suspenderia a ordenação necessária do mundo, que Ele próprio estabeleceu, fazendo milagres.
Mais do que isso. Sendo Deus perfeito e infinito, que necessidade teria de criar um mundo material, finito e imperfeito? Como uma causa infinita produz um efeito finito? Mais ainda. Deus é eterno, portanto alheio ao tempo; mas o mundo não é eterno, pois foi criado por Deus e, nesse caso, como um ser eterno realiza uma ação temporal? Como falar em Deus antes do mundo e depois do mundo, se “antes” e “depois” são qualidades do tempo e não da eternidade?
Para o fiel, a alma é imortal e destinada a uma vida futura; para a Filosofia, cabe oferecer provas que demonstrem a imortalidade.
Os místicos experimentam a fusão plena no seio de Deus, sentem estar nele e nele viver. Para a Filosofia, não sentimos Deus, mas o conhecemos pela razão.
Essa peculiaridade da cultura ocidental afetou a própria religião. De fato, para competir com a Filosofia e suplantá-la, a religião precisou oferecer-se sob a forma de provas racionais, conceitos, teses, teorias. Tornou-se teologia, ciência sobre Deus. Transformou os textos da história sagrada em doutrina.
Todavia, certas crenças religiosas jamais poderão ser transformadas em teses e demonstrações racionais sem serem destruídas. Não há como provar racionalmente que Jeová falou a Moisés, no monte Sinai. Não há como provar racionalmente a virgindade de Maria, a encarnação do Filho de Deus, a Santíssima Trindade, a Eucaristia. São verdades da fé e, como tais, mistérios. Estes são verdades inquestionáveis, isto é, dogmas. Eis por que o apóstolo Paulo declarou que “a razão é um escândalo para a fé”.
Tomemos um exemplo do Antigo Testamento. Ali é narrado que, durante uma batalha, Josué fez o Sol parar, a fim de que, com o prolongamento do dia, pudesse vencer a guerra. Essa história sagrada pressupõe que o Sol se movimenta em torno da Terra e que esta permanece imóvel. Estando narrada no texto revelado pelo próprio Deus, a história de Josué não pode ser contestada.
A mesma teoria da mobilidade do Sol e imobilidade da Terra existia como tese filosófico-científica no pensamento de Aristóteles e, como tal, foi refutada pela ciência de Copérnico, Galileu e Kepler. Porém, se a estes era permitido refutar uma teoria filosófico-científica por meio de outra, não lhes era permitido negar a história de Josué. Eis por que, durante séculos, a Igreja considerou o heliocentrismo uma heresia, condenou-a e submeteu sábios, como Galileu, aos tribunais da Inquisição.
Um outro exemplo, agora vindo da biologia, vai na mesma direção: a teoria da evolução, de Darwin, que demonstra a origem do homem a partir de primatas. A Bíblia afirma que o homem foi criado diretamente por Deus, à sua imagem e semelhança, no sexto dia da criação. Sob essa perspectiva, a teoria darwiniana foi considerada heresia, condenada e, durante anos, não pôde ser ensinada nas escolas cristãs, tendo mesmo havido um caso, nos Estados Unidos, de um professor primário processado por um tribunal por ensiná-la.
Um exemplo, agora vindo do Novo Testamento, apresenta o mesmo problema. Historiadores, lingüistas e antropólogos fizeram estudos sobre as culturas de toda a região do Oriente Médio e do norte da África, nelas encontrando uma referência constante ao pão, ao vinho, ao cordeiro imolado e ao deus morto e ressuscitado. Eram culturas de uma sociedade agrária, com ritos de fertilidade da terra e dos animais, realizando cerimônias muito semelhantes às que seriam realizadas, depois, pela missa cristã. Desse ponto de vista, o ritual da missa pertence a uma tradição religiosa agrária, oriental e africana, muito anterior ao cristianismo. Essa descoberta científica, porém, contraria as verdades cristãs, na medida em que a missa é considerada liturgia que repete e rememora um conjunto único e novo de eventos relativos à vida, paixão e morte de Jesus.
Poderíamos prosseguir com os exemplos, mas não é necessário. O que queremos destacar aqui é a peculiaridade da relação que, na cultura ocidental, criadora da Filosofia e da ciência, se estabeleceu entre a razão e a fé. As dificuldades dessa relação ocuparam os medievais, modernos e nossos contemporâneos, parecendo insolúveis.
A religião acusa a Filosofia e a ciência de heresia e ateísmo, enquanto ambas acusam a religião de dogmatismo, atraso e intolerância.
Conciliação entre Filosofia e religião
Vários filósofos procuraram conciliar Filosofia e religião. Das tentativas feitas, mencionaremos três, cronologicamente mais próximas de nós: a de Kant, a de Hegel e a da fenomenologia.
A crítica kantiana à pretensão da metafísica de ser ciência dirige-se à Filosofia, quando esta assume o conteúdo de uma teologia racional (demonstração racional da essência e existência de Deus), uma psicologia racional (demonstração da imortalidade da alma) e uma cosmologia racional (demonstração da origem e essência do mundo ou Natureza). A distinção entre fenômeno e nôumeno permite ao filósofo limitar o campo do conhecimento teórico ao primeiro e impedir a pretensão de teorizar sobre o segundo.
A metafísica não é conhecimento da essência em si de Deus, alma e mundo; estes são nôumenos (realidade em si) inacessíveis ao nosso entendimento. A religião, por sua vez, não é teologia, não é teoria sobre Deus, alma e mundo, mas resposta a uma pergunta da razão que esta não pode responder teoricamente: “O que podemos esperar?”.
Qual o papel da religião? Oferecer conceitos e princípios para a ação moral e fortalecer a esperança num destino superior da alma humana. Sem Deus e a alma livre não haveria a humanidade, mas apenas a animalidade natural; sem a imortalidade, o dever tornar-se-ia banal.
Hegel segue numa direção diversa da de Kant. Para ele, a realidade não é senão a história do Espírito em busca da identidade consigo mesmo. Deus não é uma substância, cuja essência foi fixada antes e fora do tempo, mas é o sujeito espiritual, que se efetua como sujeito temporal, cuja ação é ele mesmo manifestando-se para si mesmo. A mais baixa manifestação do Espírito é a Natureza; a mais alta, a Cultura.
Na Cultura, o Espírito se realiza como Arte, Religião e Filosofia, numa seqüência que é o aperfeiçoamento rumo ao término do tempo. Isso significa que Deus se manifesta, primeiro, como Arte nas artes; depois, como Religião nas religiões; depois disso, como Estado nos estados; e, finalmente, como Filosofia nas filosofias. Em lugar de opor religião e Filosofia, Hegel faz da primeira uma etapa preparatória da segunda.
A fenomenologia, como vimos, descreve essências constituídas pela intencionalidade da consciência, que é doadora de sentido à realidade. A consciência constitui as significações, assumindo atitudes diferentes, cada qual com seu campo específico, sua estrutura e finalidades próprias. Assim como há a atitude natural (a crença realista ingênua na existência das coisas) e a atitude filosófica (a reflexão), há também a atitude religiosa, como uma das possibilidades da vida da consciência. Quando esta se relaciona com o mundo através das categorias e das práticas ligadas ao sagrado, constitui a atitude religiosa.
Assim, a consciência pode relacionar-se com o mundo de maneiras variadas – senso comum, ciência, filosofia, artes, religião -, de sorte que não há oposição nem exclusão entre elas, mas diferença. Isso significa que a oposição só surgirá quando a consciência, estando numa atitude, pretender relacionar-se com o mundo utilizando significações e práticas de uma outra atitude. Foi isso que engendrou a oposição e o conflito entre Filosofia e religião, pois, sendo atitudes diferentes da consciência, cada uma delas não pode usurpar os modos de conhecer e agir, nem as significações da outra.
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Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
Unidade 8
O mundo da prática
Capítulo 3
O universo das artes
Unidade do eterno e do novo
Alberto Caeiro, um dos heterônimos do poeta Fernando Pessoa, leva-nos ao âmago da arte quando escreve:
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo.
A eterna novidade do mundo. Alberto Caeiro/Fernando Pessoa une duas palavras, que, normalmente, estão separadas e mesmo em oposição – eterna e novidade -, pois o eterno é o que, fora do tempo, permanece sempre idêntico a si mesmo, enquanto o novo é pura temporalidade, o tempo como movimento e inquietação que se diferencia de si mesmo. No entanto, essa unidade do eterno e do novo, aparentemente impossível, realiza-se pelos e para os humanos. Chama-se arte.
Merleau-Ponty dizia que a arte é advento – um vir a ser do que nunca antes existiu -, como promessa infinita de acontecimentos – as obras dos artistas. No ensaio A linguagem indireta e as vozes do silêncio, ele escreve:
O primeiro desenho nas paredes das cavernas fundava uma tradição porque recolhia uma outra: a da percepção. A quase eternidade da arte confunde-se com a quase eternidade da existência humana encarnada e por isso temos, no exercício de nosso corpo e de nossos sentidos, com que compreender nossa gesticulação cultural, que nos insere no tempo.
Que dizem os desenhos nas paredes da caverna? Que o mundo é visível e para ser visto, e que o artista dá a ver o mundo. Que mundo? Aquele eternamente novo, buscado incessantemente pelos artistas. É assim que Monet pinta várias vezes a mesma catedral e, em cada tela, nasce uma nova catedral. Referindo-se a essa busca do eterno novo em Monet, o filósofo Gaston Bachelard escreve, num ensaio denominado O pintor solicitado pelos elementos:
Um dia, Claude Monet quis que a catedral fosse verdadeiramente aérea – aérea em sua substância, aérea no próprio coração das pedras. E a catedral tomou da bruma azulada toda a matéria azul que a própria bruma tomara do céu azul… Num outro dia, outro sonho elementar se apodera da vontade de pintar. Claude Monet quer que a catedral se torne uma esponja de luz, que absorva em todas as suas fileiras de pedras e em todos os seus ornamentos o ocre de um sol poente. Então, nessa nova tela, a catedral é um astro doce, um astro ruivo, um ser adormecido no calor do dia. As torres brincavam mais alto no céu, quando recebiam o elemento aéreo. Ei-las agora mais perto da Terra, mais terrestres, ardendo apenas um pouco, como fogo guardado nas pedras de uma lareira.
Que procura o artista? Responde Caeiro/Pessoa: “o pasmo essencial / que tem uma criança se, ao nascer, / reparasse que nascera deveras”. O artista busca o mundo em estado nascente, tal como seria não só ao ser visto por nós pela primeira vez, mas tal como teria sido no momento originário da criação. Mas, simultaneamente, busca o mundo em sua perenidade e permanência. É o que procura o pintor Cézanne, cujo trabalho é assim comentado por Merleau-Ponty no ensaio A dúvida de Cézanne:
Vivemos em meio aos objetos construídos pelos homens, entre utensílios, casas, ruas, cidades e na maior parte do tempo só os vemos através das ações humanas de que podem ser os pontos de aplicação… A pintura de Cézanne suspende estes hábitos e revela o fundo de Natureza inumana sobre a qual se instala o homem… A paisagem aparece sem vento, a água do lago sem movimento, os objetos transidos hesitando como na origem da Terra. Um mundo sem familiaridade… Só um humano, contudo, é justamente capaz desta visão que vai até as raízes, aquém da humanidade constituída… O artista é aquele que fixa e torna acessível aos demais humanos o espetáculo de que participam sem perceber.
A obra de arte dá a ver, a ouvir, a sentir, a pensar, a dizer. Nela e por ela, a realidade se revela como se jamais a tivéssemos visto, ouvido, sentido, pensado ou dito. A experiência de nascer todo dia para a “eterna novidade do mundo” pode ser feita por nós quando lemos o poema de Jorge de Lima, Poema do nadador:
A água é falsa, a água é boa.
Nada, nadador!
A água é mansa, a água é doida,
Aqui é fria, ali é morna,
A água é fêmea.
Nada, nadador!
A água sobe, a água desce,
A água é mansa, a água é doida.
Nada, nadador!
A água te lambe, a água te abraça,
A água te leva, a água te mata.
Nada, nadador!
Se não, que restará de ti, nadador?
Nada, nadador.
Rigorosamente, não há nada nesse poema que desconheçamos. Nenhuma das palavras empregadas pelo poeta nos é desconhecida. E, no entanto, tudo aí é inteiramente novo. O poema diz o que, antes dele, jamais havia sido dito e que, sem ele, nunca seria dito. O nada é nadar, verbo, mas é também o nada, pronome indefinido negativo, e o jogo único e inesperado desse dois sentidos cria um terceiro, o nadador que é um nadador, que nada no nada e por isso é um nada-dor. O poeta transfigura a linguagem para fazê-la dizer algo, mas esse algo não existe antes, aquém, depois, além do poema, pois é o próprio poema.
Um livro, diz Merleau-Ponty, é “uma máquina infernal de produzir significações”. Começamos a lê-lo preguiçosamente, meio distraídos. De repente, algumas palavras nos despertam, como que nos queimam, o livro já não nos deixa indiferentes, passamos realmente a lê-lo. Que se passa? A passagem da linguagem falada – aquela que possuíamos em comum com o escritor – à linguagem falante – uma certa operação com os signos e a significação, uma certa torção nas palavras, um ligeiro descentramento do sentido instituído e a explosão de um sentido novo que “nos pega”.
A literatura, como a pintura, a música, a escultura e qualquer das artes, é a passagem do instituído ao instituinte, transfiguração do existente numa outra realidade, que o faz renascer sob a forma de uma obra.
O que é ler? A leitura “é um afrontamento entre os corpos gloriosos e impalpáveis de minha palavra e a do autor”, a descoberta do poder da linguagem instituinte, “que aparece quando a linguagem instituída é privada de seu equilíbrio costumeiro, ordenando-se novamente para ensinar ao leitor o que este não sabia pensar ou dizer”.
Que é escrever? Para o poeta e o romancista, diz Sartre, é distanciar-se da linguagem-instrumento e entrar na atitude poética, tratando as palavras como entes reais e não como meros signos ou sinais estabelecidos. Apanham a linguagem em estado selvagem (como o pintor apanha a natureza inumana), como se as palavras fossem seres como a Terra, a relva, a montanha ou a água. O prosador faz algo diverso do poeta: quer que as palavras, além de por si e em si significarem alguma coisa, designem o mundo, ainda que para isso o escritor tenha que inventar novamente o mundo por meio das palavras. O prosador, escreve Sartre, “é aquele que escolheu um modo de ação que se poderia chamar de ação por desvendamento”.
O que há de espantoso nas artes é que elas realizam o desvendamento do mundo recriando o mundo noutra dimensão e de tal maneira que a realidade não está aquém e nem na obra, mas é a própria obra de arte.
Talvez a melhor comprovação disso seja a música. Feita de sons, será destruída se tentarmos ouvir cada um deles ou reproduzi-los como no toque de um corpo de cristal ou de metal. A música, pela harmonia, pela proporção, pela combinação de sons, pelo ritmo e pela percussão, cria um mundo sonoro que só existe por ela, nela e que é ela própria. Recolhe a sonoridade do mundo e de nossa percepção auditiva, mas reinventa o som e a audição como se estes jamais houvessem existido, tornando o mundo eternamente novo.
Arte e técnica
A palavra arte vem do latim ars e corresponde ao termo grego techne, técnica, significando: o que é ordenado ou toda espécie de atividade humana submetida a regras. Em sentido lato, significa habilidade, destreza, agilidade. Em sentido estrito, instrumento, ofício, ciência. Seu campo semântico se define por oposição ao acaso, ao espontâneo e ao natural. Por isso, em seu sentido mais geral, arte é um conjunto de regras para dirigir uma atividade humana qualquer.
Nessa perspectiva, falamos em arte médica, arte política, arte bélica, retórica, lógica, poética, dietética. Platão não a distinguia das ciências nem da Filosofia, uma vez que estas, como a arte, são atividades humanas ordenadas e regradas. A distinção platônica era feita entre dois tipos de artes ou técnicas: as judicativas, isto é, dedicadas apenas ao conhecimento, e as dispositivas ou imperativas, voltadas para a direção de uma atividade, com base no conhecimento de suas regras.
Aristóteles, porém, estabeleceu duas distinções que perduraram por séculos na Cultura ocidental. Numa delas distingue ciência-Filosofia de arte ou técnica: a primeira refere-se ao necessário, isto é, ao que não pode ser diferente do que é, enquanto a segunda se refere ao contingente ou ao possível, portanto, ao que pode ser diferente do que é. Outra distinção é feita no campo do próprio possível, pela diferença entre ação e fabricação, isto é, entre praxis e poiesis. A política e a ética são ciências da ação. As artes ou técnicas são atividades de fabricação.
Plotino completa a distinção, separando teoria e prática e distinguindo as técnicas ou artes cuja finalidade é auxiliar a Natureza – como a medicina, a agricultura – daquelas cuja finalidade é fabricar um objeto com os materiais oferecidos pela Natureza – o artesanato. Distingue também um outro conjunto de artes e técnicas que não se relacionam com a Natureza, mas apenas com o próprio homem, para torná-lo melhor ou pior: música e retórica, por exemplo.
A classificação das técnicas ou artes seguirá um padrão determinado pela sociedade antiga e, portanto, pela estrutura social fundada na escravidão, isto é, uma sociedade que despreza o trabalho manual. Uma obra, As núpcias de Mercúrio e Filologia, escrita pelo historiador romano Varrão, oferece a classificação que perdurará do século II d.C. ao século XV, dividindo as artes em liberais (os dignas do homem livre) e servis ou mecânicas (próprias do trabalhador manual).
São artes liberais: gramática, retórica, lógica, aritmética, geometria, astronomia e música, compondo o currículo escolar dos homens livres. São artes mecânicas todas as outras atividades técnicas: medicina, arquitetura, agricultura, pintura, escultura, olaria, tecelagem, etc. Essa classificação diferenciada será justificada por santo Tomás de Aquino durante a Idade Média como diferença entre as artes que dirigem o trabalho da razão e as que dirigem o trabalho das mãos. Ora, somente a alma é livre e o corpo é para ela uma prisão, de sorte que as artes liberais são superiores às artes mecânicas.
As palavras mecânica e máquina vêm do grego e significam estratagema engenhoso para resolver uma dificuldade corporal. Assim, a alavanca ou a polia são mecânicas ou máquinas. Qual é o estratagema astucioso? Fazer com que alguém fraco realize uma tarefa acima de suas forças, graças a um instrumento engenhoso. Uma alavanca permite deslocar um peso que uma pessoa, sozinha, jamais deslocaria. A técnica pertence, assim, ao campo dos instrumentos engenhosos e astutos para auxiliar o corpo a realizar uma atividade penosa, dura, difícil.
A partir da Renascença, porém, trava-se uma luta pela valorização das artes mecânicas, pois o humanismo renascentista dignifica o corpo humano e essa dignidade se traduz na batalha pela dignidade das artes mecânicas para convertê-las à condição de artes liberais. Além disso, à medida que o capitalismo se desenvolve, o trabalho passa a ser considerado fonte e causa das riquezas, sendo por isso valorizado. A valorização do trabalho acarreta a valorização das técnicas e artes mecânicas.
A primeira dignidade obtida pelas artes mecânicas foi sua elevação à condição de conhecimento, como as artes liberais. A segunda dignidade foi alcançada no final do século XVII e a partir do século XVIII, quando distinguiram-se as finalidades das várias artes mecânicas, isto é, as que têm como fim o que é útil aos homens – medicina, agricultura, culinária, artesanato – e aquelas cujo fim é o belo – pintura, escultura, arquitetura, poesia, música, teatro, dança. Com a idéia de beleza surgem as sete artes[i] ou as belas-artes, modo pelo qual nos acostumamos a entender a arte.
A distinção entre artes da utilidade e artes da beleza acarretou uma separação entre técnica (o útil) e arte (o belo), levando à imagem da arte como ação individual espontânea, vinda da sensibilidade e da fantasia do artista como gênio criador. Enquanto o técnico é visto como aplicador de regras e receitas vindas da tradição ou da ciência, o artista é visto como dotado de inspiração, entendida como uma espécie de iluminação interior e espiritual misteriosa, que leva o gênio a criar a obra.
Além disso, como a obra de arte é pensada a partir de sua finalidade – a criação do belo -, torna-se inseparável da figura do público (espectador, ouvinte, leitor), que julga e avalia o objeto artístico conforme tenha ou não realizado a beleza. Surge, assim, o conceito de juízo de gosto, que será amplamente estudado por Kant.
Gênio criador e inspiração, do lado do artista (fala-se nele como “animal incomparável”); beleza, do lado da obra; e juízo de gosto, do lado do público, constituem os pilares sobre os quais se erguerá, como veremos adiante, uma disciplina filosófica: a estética.
Todavia, desde o final do século XIX e durante o século XX, modificou-se a relação entre arte e técnica.
Por um lado, como vimos ao estudar as ciências, o estatuto da técnica modificou-se quando esta se tornou tecnologia, portanto, uma forma de conhecimento e não simples ação fabricadora de acordo com regras e receitas. Por outro lado, as artes passaram a ser concebidas menos como criação genial misteriosa e mais como expressão criadora, isto é, como transfiguração do visível, do sonoro, do movimento, da linguagem, dos gestos em obras artísticas.
As artes tornam-se trabalho da expressão e mostram que, desde que surgiram pela primeira vez, foram inseparáveis da ciência e da técnica. Assim, por exemplo, a pintura e a arquitetura da Renascença são incompreensíveis sem a matemática e a teoria da harmonia e das proporções; a pintura impressionista, incompreensível sem a física e a óptica, isto é, sem a teoria das cores, etc. A novidade está no fato de que, agora, as artes não ocultam essas relações, os artistas se referem explicitamente a elas e buscam nas ciências e nas técnicas respostas e soluções para problemas artísticos.
A arte não perde seu vínculo com a idéia de beleza, mas a subordina a um outro valor, a verdade. A obra de arte busca caminhos de acesso ao real e de expressão da verdade. Em outras palavras, as artes não pretendem imitar a realidade, nem pretendem ser ilusões sobre a realidade, mas exprimir por meios artísticos a própria realidade. O pintor deseja revelar o que é o mundo visível; o músico, o que é o mundo sonoro; o dançarino, o que é o mundo do movimento; o escritor, o que é o mundo da linguagem; o escultor, o que é o mundo da matéria e da forma. Para fazê-lo, recorrem às técnicas e aos instrumentos técnicos (como, aliás, sempre o fizeram, apesar da imagem do gênio criador inspirado, que tira de dentro de si a obra).
Três manifestações artísticas contemporâneas podem ilustrar o modo como arte e técnica se encontram e se comunicam: a fotografia, o cinema e o design.
Fotografia e cinema surgem, inicialmente, como técnicas de reprodução da realidade. Pouco a pouco, porém, tornam-se interpretações da realidade e artes da expressão. O design, por sua vez, introduz as artes (pintura, escultura, arquitetura) no desenho e na produção de objetos técnicos (usados na indústria e nos laboratórios científicos) e de utensílios cotidianos (máquinas domésticas, automóveis, mobiliário, talheres, copos, pratos, xícaras, lápis, canetas, aviões, tecidos para móveis e cortinas, etc.).
As fronteiras entre arte e técnica tornam-se cada vez mais tênues: é preciso uma película tecnicamente perfeita para a foto artística e para o cinema de arte; é preciso um material tecnicamente perfeito para que um disco possa reproduzir um concerto; é preciso equipamentos técnicos de alta qualidade e precisão para produzir fotos, filmes, discos, vídeos, cenários e iluminação teatrais.
A técnica de fabricação dos instrumentos musicais e a invenção de aparelhos eletrônicos para música; as possibilidades técnicas de novas tintas e cores, graças aos materiais sintéticos, modificando a pintura; as possibilidades técnicas de novos materiais de construção, modificando a arquitetura; o surgimento de novos materiais sintéticos, modificando a escultura, são alguns exemplos da relação interna entre atividade artística e invenção técnico-tecnológica.
Em nossos dias, a distinção entre arte erudita e arte popular passa pela presença ou ausência da tecnologia de ponta nas artes. A arte popular é artesanal; a erudita, tecnológica.
No entanto, em nossa sociedade industrial, ainda é possível distinguir as obras de arte e os objetos técnicos produzidos a partir do design e com a preocupação de serem belos. A diferença está em que a finalidade desses objetos é funcional, isto é, os materiais e as formas estão subordinados à função que devem preencher (uma cadeira deve ser confortável para sentar; uma caneta, adequada para escrever; um automóvel, adequado para a locomoção; uma geladeira, adequada para a conservação dos alimentos, etc.). Da obra de arte, porém, não se espera nem se exige funcionalidade, havendo nela plena liberdade para lidar com formas e materiais.
Arte e religião
As duas primeiras manifestações culturais foram, historicamente, o trabalho e a religião. Ambas instituíram as primeiras formas da sociabilidade – a vida comunitária – e da autoridade – o poder religioso. Ambas instituíram os símbolos de organização humana do espaço e do tempo, do corpo e do espírito. As artes, isto é, as técnicas ou artes mecânicas, foram, assim, inseparáveis de ambas.
Mais do que isso. Vimos que a relação com o sagrado, ao organizar o espaço e o tempo e o sentimento da comunhão ou separação entre os humanos e a Natureza e deles com o divino, simbolizou o todo da realidade pela sacralização. Assim, todas as atividades humanas assumiram a forma de rituais: a guerra, a semeadura e a colheita, a culinária, as trocas, o nascimento e a morte, a doença e a cura, a mudança das estações, a passagem do dia à noite, ventos e chuvas, o movimento dos astros, tudo se realiza ritualisticamente, tudo assume a forma de um culto religioso.
A sacralização e a ritualização da vida fazem com que a medicina, agricultura, culinária, edificações, produção de utensílios, música, instrumentos musicais, dança, adornos tornem-se ritos ou elementos de cultos. Semear e colher, caçar e pescar, cozer alimentos, tanto quanto fiar e tecer, pintar, dançar e cantar são atividades técnico-religiosas. As futuras sete artes (as belas-artes) nascem, pois, no interior dos cultos e para servi-los. Serão necessários milhares de anos e profundas transformações histórico-sociais para que, um dia, surjam como atividade cultural autônoma, dotadas de valor e significação próprias.
O artista era mago – como o médico e o astrólogo -, artesão – como o arquiteto, o pintor e o escultor -, iniciado num ofício sagrado – como o músico e o dançarino. É na qualidade de mago, artífice e detentor de um ofício que realizava sua arte. Esta, por ser parte inseparável do culto e do ritual, não se efetuava segundo a liberdade criadora do técnico-artesão, mas exigia a repetição das mesmas regras e normas para a fabricação dos objetos e a realização dos gestos.
O artífice iniciava-se nos segredos das artes ou técnicas recebendo uma educação especial, tornando-se um iniciado em mistérios. Aprendia a conhecer a matéria prima preestabelecida para o exercício de sua arte, a usar utensílios e instrumentos preestabelecidos para sua ação, a realizar gestos, utilizar cores, manipular ervas segundo um receituário fixo e secreto, conhecido apenas pelos iniciados. O artista era oficiante de cultos e fabricador dos objetos e gestos dos cultos. Seu trabalho nascia de um dom dos deuses (que deram aos humanos o conhecimento do fogo, dos metais, das sementes, dos animais, das águas e dos ventos, etc.) e era um dom para os deuses.
A dimensão religiosa das artes deu aos objetos artísticos ou às obras de arte uma qualidade que foi estudada pelo filósofo alemão Walter Benjamin: a aura. Que é a aura?
A aura é a absoluta singularidade de um ser – natural ou artístico -, sua condição de exemplar único que se oferece num aqui e agora irrepetível, sua qualidade de eternidade e fugacidade simultâneas, seu pertencimento necessário ao contexto onde se encontra e sua participação numa tradição que lhe dá sentido. É, no caso da obra de arte, sua autenticidade, o vínculo interno entre unidade e durabilidade. Única, una, irrepetível, duradoura e efêmera, aqui-agora e parte de uma tradição, autêntica: a obra de arte aurática é aquela que torna distante o que está perto, porque transfigura a realidade, dando-lhe a qualidade da transcendência.
No ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Walter Benjamin escreve:
Em suma, o que é a aura? É uma figura singular, composta de elementos especiais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho.
Porque as artes tinham como finalidade sacralizar e divinizar o mundo – tornando-o distante e transcendente – e, ao mesmo tempo, presentificar os deuses aos homens – tornando o divino próximo e imanente –, sua origem religiosa transmitiu às obras de arte a qualidade aurática mesmo quando deixaram de ser parte da religião para se tornarem autônomas e belas-artes. No mesmo ensaio, escreve Benjamin:
A unicidade da obra de arte é idêntica à sua inserção no contexto da tradição. Sem dúvida, essa tradição é algo muito vivo, extraordinariamente variável. Uma antiga estátua de Vênus, por exemplo, estava inscrita numa certa tradição entre os gregos, que faziam dela um objeto de culto, e em outra tradição na Idade Média, quando os doutores da Igreja viam nela um ídolo malfazejo. O que era comum às duas tradições, contudo, era a unicidade da obra ou, em outras palavras, sua aura.
A forma mais primitiva de inserção da obra de arte no contexto da tradição se exprimia no culto. As mais antigas obras de arte, como sabemos, surgiram a serviço de um ritual, inicialmente mágico, e depois religioso. O que é de importância decisiva é que esse modo de ser aurático da obra de arte nunca se destaca completamente de sua função ritual.
Em outras palavras: o valor único da obra de arte “autêntica”, tem sempre um fundamento teológico, pois mais remoto que seja: ele pode ser reconhecido, mesmo nas formas mais profanas do culto do belo. Essas formas profanas do culto do belo, surgidas na Renascença e vigentes durante três séculos, deixaram manifesto esse fundamento.
Passando do divino ao belo, as artes não perderam o que a religião lhes dera: a aura. Não por acaso, o artista foi visto como gênio criador inspirado, indivíduo excepcional que cria uma obra excepcional, isto é, manteve em sua figura o mistério do mágico antigo.
Arte e Filosofia
Do ponto de vista da Filosofia, podemos falar em dois grandes momentos de teorização da arte. No primeiro, inaugurado por Platão e Aristóteles, a Filosofia trata as artes sob a forma da poética; no segundo, a partir do século XVIII, sob a forma da estética.
Arte poética é o nome de uma obra aristotélica sobre as artes da fala e da escrita, do canto e da dança: a poesia e o teatro (tragédia e comédia). A palavra poética é a tradução para poiesis, portanto, para fabricação. A arte poética estuda as obras de arte como fabricação de seres e gestos artificiais, isto é, produzidos pelos seres humanos.
Estética é a tradução da palavra grega aesthesis, que significa conhecimento sensorial, experiência, sensibilidade. Foi empregada para referir-se às artes, pela primeira vez, pelo alemão Baumgarten, por volta de 1750. Em seu uso inicial, referia-se ao estudo das obras de arte enquanto criações da sensibilidade, tendo como finalidade o belo. Pouco a pouco, substituiu a noção de arte poética e passou a designar toda investigação filosófica que tenha por objeto as artes ou uma arte. Do lado do artista e da obra, busca-se a realização da beleza; do lado do espectador e receptor, busca-se a reação sob a forma do juízo de gosto, do bom-gosto.
A noção de estética, quando formulada e desenvolvida nos séculos XVIII e XIX, pressupunha:
1. que a arte é produto da sensibilidade, da imaginação e da inspiração do artista e que sua finalidade é a contemplação;
2. que a contemplação, do lado do artista, é a busca do belo (e não do útil, nem do agradável ou prazeroso) e, do lado do público, é a avaliação ou o julgamento do valor de beleza atingido pela obra;
3. que o belo é diferente do verdadeiro.
De fato, o verdadeiro é o que é conhecido pelo intelecto por meio de demonstrações e provas, que permitem deduzir um particular de um universal (dedução) ou inferir um universal de vários particulares (indução) por meio de conceitos e leis. O belo, ao contrário, tem a peculiaridade de possuir um valor universal, embora a obra de arte seja essencialmente particular.
Em outras palavras, a obra de arte, em sua particularidade e singularidade única, oferece algo universal – a beleza – sem necessidade de demonstrações, provas, inferências e conceitos. Quando leio um poema, escuto uma sonata ou observo um quadro, posso dizer que são belos ou que ali está a beleza, embora esteja diante de algo único e incomparável. O juízo de gosto teria, assim, a peculiaridade de emitir um julgamento universal, referindo-se, porém, a algo singular e particular.
Desde o início do século passado, todavia, abandona-se a idéia de juízo de gosto como critério de apreciação e avaliação das obras de arte. De fato, as artes deixaram de ser pensadas exclusivamente do ponto de vista da produção da beleza para serem vistas sob outras perspectivas, tais como expressão de emoções e desejos, interpretação e crítica da realidade social, atividade criadora de procedimentos inéditos para a invenção de objetos artísticos, etc. Essa mudança fez com que a idéia de gosto e de beleza perdessem o privilégio estético e que a estética se aproximasse cada vez mais da idéia de poética, a arte como trabalho e não como contemplação e sensibilidade, fantasia e ilusão. A estética ou filosofia da arte possui três núcleos principais de investigação: a relação entre arte e Natureza, arte e humano, e finalidades-funções da arte.
Relação entre arte e Natureza
A primeira e mais antiga relação entre arte e Natureza proposta pela Filosofia foi a da imitação: “a arte imita a Natureza”, escreve Aristóteles. A obra de arte resulta da atividade do artista para imitar outros seres por meio de sons, sentimentos, cores, formas, volumes, etc., e o valor da obra decorre da habilidade do artista para encontrar materiais e formas adequados para obter o efeito imitativo.
Evidentemente, imitar não significa reproduzir, mas representar a realidade através da fantasia e da obediência a regras para que a obra figure algum ser (natural ou sobrenatural), algum sentimento ou emoção, algum fato (acontecido ou inventado). Harmonia e proporção das formas, dos ritmos, das cores, das palavras ou dos sons oferecem a finalidade a ser alcançada e estabelecem as regras a serem seguidas pelos artistas.
A partir do Romantismo (portanto, após quase 23 séculos de definição da arte como imitação), a Filosofia passa a definir a obra de arte como criação. Enquanto na concepção anterior o valor era buscado na qualidade do objeto imitado (imitar um deus é mais valioso do que imitar um humano; imitar um humano, mais valioso do que imitar um animal, planta ou coisa), agora o valor é localizado na figura do artista como gênio criador e imaginação criadora.
Agora, a idéia de inspiração torna-se explicadora da atividade artística: o artista, interioridade e subjetividade especial, recebe uma espécie de sopro sobrenatural que o impele a criar a obra. Esta deve exprimir sentimentos e emoções, muito mais do que figurar ou representar a realidade. A obra é a exteriorização dos sentimentos interiores do gênio excepcional.
A arte não imita nem reproduz a Natureza, mas liberta-se dela, criando uma realidade puramente humana e espiritual: pela atividade livre do artista, a fantasia, os homens se igualam à ação criadora de Deus. Essa concepção é contemporânea, na Filosofia, à idéia kantiana de diferença entre o reino natural da causalidade necessária e o reino humano da liberdade e dos fins (diferença essencial para a ética), e à idéia hegeliana do Espírito como Cultura e História, oposto e negador da passividade e da causalidade mecânica da Natureza. Em suma, a estética da criação corresponde ao momento em que a Filosofia separa homem e Natureza.
A terceira concepção, nossa contemporânea, concebe a arte como expressão e construção. A obra de arte não é pura receptividade imitativa ou reprodutiva, nem pura criatividade espontânea e livre, mas expressão de um sentido novo, escondido no mundo, e um processo de construção do objeto artístico, em que o artista colabora com a Natureza, luta com ela ou contra ela, separa-se dela ou volta a ela, vence a resistência dela ou dobra-se às exigências dela. Essa concepção corresponde ao momento da sociedade industrial, da técnica transformada em tecnologia e da ciência como construção rigorosa da realidade. A arte é trabalho da expressão que constrói um sentido novo (a obra) e o institui como parte da Cultura.
O artista é um ser social que busca exprimir seu modo de estar no mundo na companhia dos outros seres humanos, reflete sobre a sociedade, volta-se para ela, seja para criticá-la, seja para afirmá-la, seja para superá-la.
Essa terceira concepção filosófica da arte coloca o artista num embate contínuo com a Natureza e com a sociedade, deixando de vê-lo como gênio criador solitário e excepcional.
Relação entre arte e humano
Duas grandes concepções percorrem a história das relações entre arte e humano, ambas iniciadas na Grécia com Platão e Aristóteles.
A concepção platônica, que sofrerá alterações no curso da História sociocultural, considera a arte uma forma de conhecimento. A aristotélica, que também sofrerá mudanças no correr da História, toma a arte como atividade prática.
Para Platão, a arte se situa no plano mais baixo do conhecimento, pois é imitação das coisas sensíveis, elas próprias imitações imperfeitas das essências inteligíveis ou idéias. Na Renascença, porém, a concepção platônica é retomada, mas com novo sentido: afirma-se, agora, que a arte é uma das formas altas de acesso ao conhecimento verdadeiro e ao divino (fica abaixo apenas da Filosofia e do êxtase místico).
Essa mudança se deve ao fato de que a Renascença platônica redescobre os escritos herméticos e de magia natural nos quais se afirma que Deus criou o homem dando-lhe a capacidade de criar novos deuses e novos mundos, o que ele faz através das artes, e estas, por sua vez, lhe dão o conhecimento das formas secretas e invisíveis das coisas.
A valorização das artes como expressão do conhecimento encontra seu apogeu durante o Romantismo, quando a arte é concebida como “o órgão geral da Filosofia”, sob três aspectos diferentes: para alguns, a arte é a única via de acesso ao universal e ao absoluto; para outros, como Hegel, as artes são a primeira etapa da vida consciente do Espírito, preparando a religião e a Filosofia; e outros, enfim, a concebem como o único caminho para reatar o singular e o universal, o particular e o geral, pois, através da singularidade de uma obra artística, temos acesso ao significado universal de alguma realidade. Essa última perspectiva é a que encontramos, por exemplo, no filósofo Martin Heidegger, para quem a obra de arte é desvelamento e desvendamento da verdade.
A concepção aristotélica parte da diferença entre o teórico e o prático, decorrente da diferença entre o necessário e o possível, tomando a arte como atividade prática fabricadora. Essa concepção, mantida durante séculos e rivalizando com as variantes platônicas, recebe duas grandes contribuições no século XIX: a dos que afirmam a utilidade social das artes (particularmente, a arquitetura) e a dos que afirmam o caráter lúdico das artes, como Nietzsche, para quem a arte é jogo, liberdade criadora, embriaguez e delírio, vontade de potência afirmativa da vida: é “um estado de vigor animal”, “uma exaltação do sentimento da vida e um estimulante da vida”.
Fantasia, jogo, sabedoria oculta, desejo, explosão vital, afirmação da vida, acesso ao verdadeiro: eis algumas maneiras pela quais a estética concebe a atividade artística.
Finalidades-funções da arte
Duas concepções predominam no correr da História das artes, concernentes às finalidades e às funções da atividade artística: a concepção pedagógica e a expressiva.
A concepção pedagógica encontra sua primeira formulação em Platão e Aristóteles. Na República, expondo a pedagogia para a criação da cidade perfeita, Platão exclui poetas, pintores e escultores, porque imitam as coisas sensíveis e oferecem uma imagem desrespeitosa dos deuses, tomados pelas paixões humanas; porém, coloca a dança e a música como disciplinas fundamentais na formação do corpo e da alma, isto é, do caráter das crianças e dos adolescentes. Como, para Platão, gramática, estratégia, aritmética, geometria e astronomia são artes, seu ensino é considerado indispensável na formação dos guerreiros e, acrescentadas da arte dialética, na formação dos filósofos.
Aristóteles, na Arte poética, desenvolve longamente o papel pedagógico das artes, particularmente a tragédia, que, segundo o filósofo, tem a função de produzir a catarse, isto é, a purificação espiritual dos espectadores, comovidos e apavorados com a fúria, o horror e as conseqüências das paixões que movem as personagens trágicas. Essa função catártica é atribuída sobretudo à música.
Na Arte poética, Aristóteles escreve:
A música não deve ser praticada por um só tipo de benefício que dela pode derivar, mas por usos múltiplos, já que pode servir para a educação, para proporcionar a catarse e, em terceiro lugar, para o repouso da alma e a suspensão de suas fadigas.
Ecoando as palavras de Aristóteles, lemos em O mercador de Veneza, de Shakespeare:
Todo homem que em si não traga música
E a quem não toquem doces sons concordes,
É de traições, pilhagens, armadilhas.
Seu espírito vive em noite obscura,
Seus afetos são negros como o Érebo:
Não se confie em homem tal…
A concepção pedagógica da arte reaparece em Kant quando afirma que a função mais alta da arte é produzir o sentimento do sublime, isto é, a elevação e o arrebatamento de nosso espírito diante da beleza como algo terrível, espantoso, aproximação do infinito. Também Hegel insiste no papel educativo da arte. A pedagogia artística se efetua sob duas modalidades sucessivas: na primeira, a arte é o meio para a educação moral da sociedade (como Aristóteles havia mostrado a respeito da tragédia); na segunda, pela maneira como destrói a brutalidade da matéria, impondo-lhe a pureza da forma, educa a sociedade para passar do artístico à espiritualidade da religião, isto é, para passar da religião da exterioridade (os deuses e espíritos estão visíveis na Natureza) à religião da interioridade (o Absoluto é a razão e a verdade).
Por estabelecer uma relação intrínseca entre arte e sociedade, o pensamento estético de esquerda também atribui finalidade pedagógica às artes, dando-lhe a tarefa de crítica social e política, interpretação do presente e imaginação da sociedade futura. A arte deve ser engajada ou comprometida, isto é, estar a serviço da emancipação do gênero humano, oferecendo-se como instrumento do esforço de libertação.
Essa posição foi defendida pelo teatro de Brecht e, no Brasil, pelo de Augusto Boal; pela poesia de Maiakovski e Pablo Neruda, e, no Brasil, pela de Ferreira Gullar e José Paulo Paes; pelo romance de Sartre e, no Brasil, pelo de Graciliano Ramos; pelo cinema de Eisenstein e Chaplin, e, no Brasil, pelo Cinema Novo; pela pintura de Picasso e, no Brasil, pela de Portinari; na música, a música popular dos anos 60 e 70 foi de protesto político, com Edu Lobo, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Geraldo Vandré, Milton Nascimento, entre outros.
Numa outra perspectiva, a arte é concebida como expressão, transformando num fim aquilo que para as outras atividades humanas é um meio. É assim que se diz que a arte faz ver a visão, faz falar a linguagem, faz ouvir a audição, faz sentir as mãos e o corpo, faz emergir o natural da Natureza, o cultural da Cultura. Aqui, a arte é revelação e manifestação da essência da realidade, amortecida e esquecida em nossa existência cotidiana, reduzida a conceitos nas ciências e na Filosofia, transformada em instrumento na técnica e na economia. Foi com essa concepção que abrimos este capítulo.
Como expressão, as artes transfiguram a realidade para que tenhamos acesso verdadeiro a ela. Desequilibra o instituído e o estabelecido, descentra formas e palavras, retirando-as do contexto costumeiro para fazer-nos conhecê-las numa outra dimensão, instituinte ou criadora. A arte inventa um mundo de cores, formas, volumes, massas, sons, gestos, texturas, ritmos, palavras, para nos dar a conhecer nosso próprio mundo. Por ser expressiva, é alegórica e simbólica.
A palavra alegoria vem do grego, significando: falar de outra coisa ou falar de uma coisa por meio de outra. Essa outra coisa é o símbolo. Assim, a balança e a estátua de olhos vendados são símbolos da justiça, a pomba, do Espírito Santo, a bandeira vermelha, da revolução. O símbolo, em grego, é o que une, junta, sintetiza numa unidade os diferentes, dando-lhes um sentido único e novo que não possuíam quando separados. A obra de arte é essa unidade simbólica e alegórica que nos abre o acesso ao verdadeiro, ao sublime, ao terrível, ao belo, à dor e ao prazer. Um quadro como a Guernica, de Picasso, é uma síntese poderosa de todas essas dimensões da expressão.
A arte como expressão não é apenas alegoria e símbolo. É algo mais profundo, pois procura exprimir o mundo através do artista. Ao fazê-lo, leva-nos a descobrir o sentido da Cultura e da História.
Tomemos a literatura por exemplo, embora se pudesse tomar qualquer uma das artes para expor o significado da atividade expressiva.
Quando um poeta ou um romancista escrevem, trabalham à maneira do tecelão. Este trabalha com fios e pelo avesso, mas produz, do outro lado, uma tapeçaria, isto é, desenho, cor, forma e figura. O escritor trabalha apenas com palavras, com a materialidade de sinais gráficos, mas o livro (poema ou romance, conto ou novela) é imaterial: é puro sentido, pura significação, a tal ponto que, quando acabamos de lê-lo, temos o sentimento de que houve uma comunicação entre nosso espírito e o do escritor, sem palavras.
Assim, a primeira revelação que a literatura nos traz é a do mundo da linguagem como materialidade sonora e gráfica que é e faz sentido, e este é imaterial, mas não pode existir sem a materialidade das palavras. Do mesmo modo, um quadro não é senão tinta, traço, cor, contornos e, no entanto, quando o vemos não olhamos essa materialidade e sim o mundo de significações ali expresso e que não poderia exprimir-se sem aquela materialidade que o tornou possível.
O escritor exprime algo novo (como vimos na abertura deste capítulo) porque descentra, desequilibra, torce e deforma o sentido das palavras, dando-lhes um outro, inteiramente novo. Com isso, uma segunda revelação é trazida pela literatura: a diferença entre linguagem instituída (aquela que usamos todos os dias e que constitui o repertório de sinais sonoros e gráficos com que indicamos e denotamos as coisas) e linguagem instituinte ou expressiva, isto é, a linguagem nova, que foi criada pela ação do escritor. O mesmo poderia ser mostrado em cada uma das artes, pois em todas elas o momento fundamental, o instante expressivo, é instituinte do novo.
Realizada a obra – o instituinte -, ela passa, graças aos leitores, espectadores, ouvintes, a fazer parte da cultura existente, tornando-se instituída. Dessa maneira, a obra de arte nos traz uma terceira revelação. Mostra que a Cultura é um movimento contínuo em que o instituído é descentrado, desequilibrado, deformado, modificado pelo novo, que, a seguir, graças aos destinatários da obra (o seu público), é depositado e sedimentado como parte do instituído, ficando disponível para todos como algo que é integrante de sua Cultura.
Esse duplo movimento – do instituído ao instituinte e deste para aquele – assinala que a obra de arte expressiva é interminável. De fato, cada artista, para exprimir-se, retoma as obras dos outros e as suas próprias para produzir uma obra nova que, por sua vez, será retomada por outros para novas expressões. Um artista supera e ultrapassa outros porque os retoma e os transforma, fazendo vir à expressão aquilo que outros prepararam para ele.
Cada obra de arte parte de um duplo ponto de partida: do desejo do artista de exprimir alguma coisa que ainda não sabe bem o que é e que somente a obra realizada lhe dirá; e do excesso de significações que as outras obras possuem e que elas próprias não chegaram a exprimir, excesso que só existe porque tais obras existem e o fizeram aparecer.
Assim, a obra de arte nos traz uma última revelação: mostra que a História é o movimento incessante no qual o presente (o artista trabalhando) retoma o passado (o trabalho dos outros) e abre o futuro (a nova obra, instituinte).
Arte e sociedade
Se acompanharmos as transformações sofridas pelas artes, passando da função religiosa à autonomia da obra de arte como criação e expressão, veremos que as mudanças foram de dois tipos.
De um lado, mudanças quanto ao fazer artístico, diferenciando-se em escolas de arte ou estilos artísticos – clássico, gótico, renascentista, barroco, rococó, romântico, impressionista, realista, expressionista, abstrato, construtivista, surrealista, etc. Essas mudanças concernem à concepção do objeto artístico, às relações entre matéria e forma, às técnicas de elaboração dos materiais, à relação com o público, ao lugar ocupado por uma arte no interior das demais e servindo de padrão a elas, às descobertas de procedimentos e materiais novos, etc.
De outro lado, porém, concernem à determinação social da atividade artística, seja do ponto de vista da finalidade social das obras - por exemplo, o culto religioso ou o mercado de arte -, do lugar ocupado pelo artista – por exemplo, iniciado numa seita secreta, financiado por um mecenas renascentista, profissional liberal ligado ao mercado de arte, etc. -, das condições de recepção da obra de arte – a comunidade de fiéis, a elite cultivada e economicamente poderosa, as classes populares, a massa, etc.
A discussão sobre a relação arte-sociedade levou a duas atitudes filosóficas opostas. A primeira afirma que a arte só é arte se for pura, isto é, se não estiver preocupada com as circunstâncias históricas, sociais, econômicas e políticas. Trata-se da defesa da “arte pela arte”. A segunda afirma que o valor da obra de arte decorre de seu compromisso crítico diante das circunstâncias presentes. Trata-se da “arte engajada”, na qual o artista toma posição diante de sua sociedade, lutando para transformá-la e melhorá-la, e para conscientizar as pessoas sobre as injustiças e as opressões do presente.
As duas concepções são problemáticas. A primeira porque imagina o artista e a obra de arte como desprovidos de raízes no mundo e livres das influências da sociedade sobre eles – o que é impossível. A segunda porque corre o risco de sacrificar o trabalho artístico em nome das “mensagens” que a obra deve enviar à sociedade para mudá-la, dando ao artista o papel de consciência crítica do povo oprimido.
A primeira concepção desemboca no chamado formalismo (é a perfeição da forma que conta e não o conteúdo da obra). A segunda, no conteudismo (é a “mensagem” que conta, mesmo que a forma da obra seja precária, descuidada, repetitiva e sem força inovadora).
Numa perspectiva diferente, na qual se deixa de lado a querela do formalismo puro e do conteudismo engajado, Walter Benjamin analisou o modo de relação entre arte e sociedade na sociedade capitalista tecnológica contemporânea. Benjamin tomou como referencial a destruição da aura pela reprodução técnica das obras de arte. No ensaio já mencionado, escreve ele:
(…) é fácil identificar os fatores sociais específicos que condicionam o declínio atual da aura. Ele deriva de duas circunstâncias, estreitamente ligadas à crescente difusão e intensidade dos movimentos de massas. Fazer as coisas “ficarem mais próximas” é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos através da sua reprodutibilidade.
Cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto, tão perto quanto possível, na imagem, ou antes, na sua cópia, na sua reprodução. Cada dia fica mais nítida a diferença entre a reprodução, como ela nos é oferecida pelas revistas ilustradas e pelas atualidades cinematográficas, e a imagem. Nesta, a unidade e a durabilidade se associam tão intimamente como, na reprodução, a transitoriedade e a repetitividade. Retirar o objeto do seu invólucro, destruir sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar “o semelhante no mundo” é tão aguda que, graças à reprodução, ela consegue captá-lo até no fenômeno único.
Assim se manifesta na esfera sensorial a tendência que na esfera teórica explica a importância crescente da estatística. Orientar a realidade em função das massas e as massas em função da realidade é um processo de imenso alcance, tanto para o pensamento como para a intuição.
Evidentemente, diz Benjamin, a arte sempre foi reprodutível, bastando ver discípulos imitando os mestres. A questão, portanto, não está no fato da reprodução e sim na nova modalidade de reproduzir: a reprodução técnica, que permite a existência do objeto artístico em série e, em certos casos, como na fotografia, no disco e no cinema, tornando impossível distinguir original e cópia, isto é, desfazendo as próprias idéias de original e cópia.
Prossegue o filósofo:
(…) a reprodução técnica da obra de arte representa um processo novo, que se vem desenvolvendo na História intermitentemente, através de saltos separados por longos intervalos, mas com intensidade crescente. Com a xilogravura, o desenho tornou-se pela primeira vez tecnicamente reprodutível, muito antes que a imprensa prestasse o mesmo serviço para a palavra escrita.
Conhecemos as gigantescas transformações provocadas pela imprensa – a reprodução técnica da escrita. Mas a imprensa representa apenas um caso especial, embora de importância decisiva, de um processo histórico mais amplo. À xilogravura, na Idade Média, seguem-se a estampa em chapa de cobre e a água-forte, assim como a litografia, no início do século XIX.
Com a litografia, a técnica de reprodução atinge uma etapa essencialmente nova. Esse procedimento muito mais preciso, que distingue a transcrição do desenho numa pedra de sua incisão sobre um bloco de madeira ou uma prancha de cobre, permitiu às artes gráficas pela primeira vez colocar no mercado suas produções não somente em massa, como já acontecia antes, mas também sob a forma de criações sempre novas.
Dessa forma, as artes gráficas adquiriram os meios de ilustrar a vida cotidiana. Graças à litografia elas começaram a situar-se no mesmo nível que a imprensa. Mas a litografia ainda estava em seus primórdios, quando foi ultrapassada pela fotografia.
Pela primeira vez no processo de reprodução da imagem, a mão foi liberada das responsabilidades artísticas mais importantes, que agora cabiam unicamente ao olho. Como o olho apreende mais depressa do que a mão desenha, o processo de reprodução das imagens experimentou tal aceleração, que começou a situar-se no mesmo nível que a palavra oral.
Se o jornal ilustrado estava contido virtualmente na litografia, o cinema falado estava virtualmente contido na fotografia. A reprodução técnica do som iniciou-se no fim do século XIX. Com ela, a reprodução técnica atingiu tal padrão de qualidade que ela não somente podia transformar em seus objetos a totalidade das obras de arte tradicionais, submetendo-as a transformações profundas, como conquistar para si um lugar próprio entre os procedimentos artísticos.
A destruição da aura está prefigurada na própria essência da obra de arte como algo possível porque ela possui dois valores: o de culto e o de exposição, e este último suscita a reprodutibilidade quando as condições sócio-históricos a exigirem e a possibilitarem. Benjamin diz ainda:
Seria possível reconstituir a História da arte a partir do confronto de dois pólos, no interior da própria obra de arte, e ver o conteúdo dessa História na variação do peso conferido seja a um pólo, seja a outro. Os dois pólos são o valor de culto da obra e seu valor de exposição. A reprodução artística começa com imagens a serviço da magia. O que importa, nessas imagens, é que existem, e não que sejam vistas.
O alce, copiado pelo homem paleolítico nas paredes de sua caverna, é um instrumento de magia, só ocasionalmente exposto aos olhos dos outros homens: no máximo, ele deve ser visto pelos espíritos. O valor de culto, como tal, quase obriga a manter secretas as obras de artes: certas estátuas divinas somente são acessíveis ao sumo sacerdote, na cella, certas madonas permanecem cobertas quase o ano inteiro, certas esculturas em catedrais da Idade Média são invisíveis, do solo, para o observador.
À medida que as obras de arte se emancipam do seu uso ritual, aumentam as ocasiões para que sejam expostas. A exponibilidade de um busto, que pode ser deslocado de um lugar para outro, é maior que a de uma estátua divina, que tem sua sede fixa no interior de um templo. A exponibilidade de um quadro é maior que a de um mosaico ou de um afresco, que o precederam. E se a exponibilidade de uma missa, por sua própria natureza, não era talvez menor que a de uma sinfonia, esta surgiu num momento em que sua exponibilidade prometia ser maior que a da missa.
A exponibilidade de uma obra de arte cresceu em tal escala, com os vários métodos de sua reprodutibilidade técnica, que a mudança de ênfase de um pólo para outro corresponde a uma mudança qualitativa comparável à que ocorreu na pré-História.
Com efeito, assim como na pré-História a preponderância absoluta do valor de culto conferido à obra levou-a a ser concebida em primeiro lugar como instrumento mágico, e só mais tarde como obra de arte, do mesmo modo a preponderância absoluta conferida hoje a seu valor de exposição atribui-lhe funções inteiramente novas, entre as quais a “artística”, a única de que temos consciência, e que talvez se revele mais tarde como secundária.
Uma coisa é certa: o cinema nos fornece a base mais útil para examinar essa questão. É certo, também, que o alcance histórico dessa refuncionalização da arte, especialmente visível no cinema, permite um confronto com a arte da pré-História, não só do ponto de vista metodológico, como material. Essa arte registrava certas imagens, a serviço da magia, com funções práticas: seja como execução de atividades mágicas, seja a título de ensinamento dessas práticas mágicas, seja como objeto de contemplação, à qual se atribuíram efeitos mágicos.
Os temas eram o homem e seu meio, copiados segundo as exigências de uma sociedade cuja técnica se fundia inteiramente com o ritual. Essa sociedade é a antítese da nossa, cuja técnica é a mais emancipada que jamais existiu. Mas essa técnica emancipada se confronta com a sociedade moderna sob a forma de uma segunda natureza, não menos elementar que a da sociedade primitiva, como provam as guerras e as crises econômicas.
Diante dessa segunda natureza, que o homem inventou mas há muito não controla, somos obrigados a aprender, como outrora diante da primeira. Mais uma vez, a arte põe-se a serviço desse aprendizado. Isso se aplica, em primeira instância, ao cinema. O filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das inervações humanas – é essa tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro sentido.
Ao escrever sobre a mudança das artes, nos anos 30, Benjamin tinha presente uma realidade e uma esperança. A realidade era o nazi-fascismo e a guerra; a esperança, a revolução socialista.
A primeira havia transformado a política e a guerra em espetáculos artísticos: Benjamin fala na estetização da política e da guerra, transformadas em obras de arte pela propaganda e pelos grandes espetáculos de massa, nos quais jogos, paradas militares, danças, ginástica, discursos políticos e música formavam um conjunto ou uma totalidade visando a tocar fundo nas emoções e paixões mais primitivas da sociedade. Nessa perspectiva, a reprodutibilidade técnica das artes estava a serviço da propaganda de mobilização totalitária das classes sociais em torno do “grande chefe”.
Ao contrário, a esperança na revolução socialista como emancipação do gênero humano levava Benjamin a considerar favoravelmente a perda da aura e a reprodutibilidade da obra de arte como processo de democratização da Cultura, como direito de acesso às obras artísticas por toda a sociedade e, especialmente, pelos trabalhadores. Em lugar de a arte ser um privilégio de uma elite, seria um direito universal.
A esperança de Walter Benjamin malogrou. Embora o nazi-fascismo houvesse terminado com o final da Segunda Guerra Mundial, a massificação propagandística da arte não terminou com ele: foi incorporada pelo stalinismo (que desfigurou e destruiu qualquer esperança socialista) e pela indústria cultural dos países capitalistas. Surgia a cultura de massas.
Indústria cultural e cultura de massa
A modernidade terminou um processo que a Filosofia começara desde a Grécia: o desencantamento do mundo, isto é, a passagem do mito à razão, da magia à ciência e à lógica. Esse processo liberou as artes da função e finalidade religiosas, dando-lhes autonomia.
No entanto, a partir da segunda revolução industrial no século XIX e prosseguindo no que se denomina agora sociedade pós-industrial ou pós-moderna (iniciada nos anos 70 do século passado), as artes foram submetidas a uma nova servidão: as regras do mercado capitalista e a ideologia da indústria cultural, baseada na idéia e na prática do consumo de “produtos culturais” fabricados em série. As obras de arte são mercadorias, como tudo o que existe no capitalismo.
Perdida a aura, a arte não se democratizou, massificou-se para consumo rápido no mercado da moda e nos meios de comunicação de massa, transformando-se em propaganda e publicidade, sinal de status social, prestígio político e controle cultural.
Sob os efeitos da massificação da indústria e consumo culturais, as artes correm o risco de perder três de suas principais características:
1. de expressivas, tornarem-se reprodutivas e repetitivas;
2. de trabalho da criação, tornarem-se eventos para consumo;
3. de experimentação do novo, tornarem-se consagração do consagrado pela moda e pelo consumo.
A arte possui intrinsecamente valor de exposição ou exponibilidade, isto é, existe para ser contemplada e fruída. É essencialmente espetáculo, palavra que vem do latim e significa: dado à visibilidade. No entanto, sob o controle econômico e ideológico das empresas de produção artística, a arte se transformou em seu oposto: é um evento para tornar invisível a realidade e o próprio trabalho criador das obras. É algo para ser consumido e não para ser conhecido, fruído e superado por novas obras.
As obras de arte e de pensamento poderiam democratizar-se com os novos meios de comunicação, pois todos poderiam, em princípio, ter acesso a elas, conhecê-las, incorporá-las em suas vidas, criticá-las, e os artistas e pensadores poderiam superá-las em outras, novas.
A democratização da cultura tem como precondição a idéia de que os bens culturais (no sentido restrito de obras de arte e de pensamento e não no sentido antropológico amplo, que apresentamos no estudo sobre a idéia de Cultura) são direito de todos e não privilégio de alguns. Democracia cultural significa direito de acesso e de fruição das obras culturais, direito à informação e à formação culturais, direito à produção cultural.
Ora, a indústria cultural acarreta o resultado oposto, ao massificar a Cultura. Por quê?
Em primeiro lugar, porque separa os bens culturais pelo seu suposto valor de mercado: há obras “caras” e “raras”, destinadas aos privilegiados que podem pagar por elas, formando uma elite cultural; e há obras “baratas” e “comuns”, destinadas à massa. Assim, em vez de garantir o mesmo direito de todos à totalidade da produção cultural, a indústria cultural introduz a divisão social entre elite “culta” e massa “inculta”. O que é a massa? É um agregado sem forma, sem rosto, sem identidade e sem pleno direito à Cultura.
Em segundo lugar, porque cria a ilusão de que todos têm acesso aos mesmos bens culturais, cada um escolhendo livremente o que deseja, como o consumidor num supermercado. No entanto, basta darmos atenção aos horários dos programas de rádio e televisão ou ao que é vendido nas bancas de jornais e revistas para vermos que, através dos preços, as empresas de divulgação cultural já selecionaram de antemão o que cada grupo social pode e deve ouvir, ver ou ler.
No caso dos jornais e revistas, por exemplo, a qualidade do papel, a qualidade gráfica de letras e imagens, o tipo de manchete e de matéria publicada definem o consumidor e determinam o conteúdo daquilo a que terá acesso e tipo de informação que poderá receber. Se compararmos, numa manhã, cinco ou seis jornais, perceberemos que o mesmo mundo – este no qual todos vivemos – transforma-se em cinco ou seis mundos diferentes ou mesmo opostos, pois um mesmo acontecimento recebe cinco ou seis tratamentos diversos, em função do leitor que a empresa jornalística pretende atingir.
Em terceiro lugar, porque inventa uma figura chamada “espectador médio”, “ouvinte médio” e “leitor médio”, aos quais são atribuídas certas capacidades mentais “médias”, certos conhecimentos “médios” e certos gostos “médios”, oferecendo-lhes produtos culturais “médios”. Que significa isso?
A indústria cultural vende Cultura. Para vendê-la, deve seduzir e agradar o consumidor. Para seduzi-lo e agradá-lo, não pode chocá-lo, provocá-lo, fazê-lo pensar, fazê-lo ter informações novas que o perturbem, mas deve devolver-lhe, com nova aparência, o que ele já sabe, já viu, já fez. A “média” é o senso comum cristalizado que a indústria cultural devolve com cara de coisa nova.
Em quarto lugar, porque define a Cultura como lazer e entretenimento, diversão e distração, de modo que tudo o que nas obras de arte e de pensamento significa trabalho da sensibilidade, da imaginação, da inteligência, da reflexão e da crítica não tem interesse, não “vende”. Massificar é, assim, banalizar a expressão artística e intelectual. Em lugar de difundir e divulgar a Cultura, despertando interesse por ela, a indústria cultural realiza a vulgarização das artes e dos conhecimentos.
Os meios de comunicação
Dos meios de comunicação, sem dúvida, o rádio e a televisão manifestam mais do que todos os outros esses traços da indústria cultural.
Começam introduzindo duas divisões: a dos públicos (as chamadas “classes” A, B, C e D) e a dos horários (a programação se organiza em horários específicos que combinam a “classe”, a ocupação – donas-de-casa, trabalhadores manuais, profissionais liberais, executivos -, a idade – crianças, adolescentes, adultos – e o sexo).
Essa divisão é feita para atender às exigências dos patrocinadores, que financiam os programas em vista dos consumidores potenciais de seus produtos e, portanto, criam a especificação do conteúdo e do horário de cada programa. Em outras palavras, o conteúdo, a forma e o horário do programa já trazem em seu próprio interior a marca do patrocinador.
Muitas vezes, o patrocinador financia um programa que nada tem a ver, diretamente, com o conteúdo e a forma veiculados. Ele o faz porque, nesse caso, não está vendendo um produto, mas a imagem de sua empresa. É assim, por exemplo, que uma empresa de cosméticos pode, em lugar de patrocinar um programa feminino, patrocinar concertos de música clássica; uma revendedora de motocicletas, em lugar de patrocinar um programa para adolescentes, pode patrocinar um programa sobre ecologia.
A figura do patrocinador determina o conteúdo e a forma de outros programas, ainda que não patrocinados por ele. Por exemplo, um banco de um governo estadual pode patrocinar um programa de auditório, pois isto é conveniente para atrair clientes, mas pode, indiretamente, influenciar o conteúdo veiculado pelos noticiários. Por quê?
Porque a quantidade de dinheiro paga pelo banco à rádio ou à televisão para o programa de auditório é muito elevada e interessa aos proprietários daquela rádio ou televisão. Se o noticiário apresentar notícias desfavoráveis ao governo do Estado ao qual pertence o banco, este pode suspender o patrocínio do programa de auditório. Para não perder o cliente, a emissora de rádio ou de televisão não veicula notícias desfavoráveis àquele governo e, pior, veicula apenas as que lhe são favoráveis. Dessa maneira, o direito à informação desaparece e os ouvintes ou telespectadores são desinformados ou ficam mal informados.
A desinformação, aliás, é o principal resultado da maioria dos noticiários de rádio e televisão. Com efeito, como são apresentadas as notícias? De modo geral, são apresentadas de maneira a impedir que o ouvinte e o espectador possam localizá-la no espaço e no tempo.
Falta de localização espacial: o espaço real é o aparelho de rádio e a tela da televisão, que tem a peculiaridade de retirar as diferenças e distâncias geográficas, de tal modo que algo acontecido na China, na Índia, nos Estados Unidos ou em Campina Grande pareça igualmente próximo e igualmente distante.
Falta de localização temporal: os acontecimentos são relatados como se não tivessem causas passadas nem efeitos futuros; surgem como pontos puramente atuais ou presentes, sem continuidade no tempo, sem origem e sem conseqüências; existem enquanto forem objetos de transmissão e deixam de existir se não forem transmitidos.
Paradoxalmente, rádio e televisão podem oferecer-nos o mundo inteiro num instante, mas o fazem de tal maneira que o mundo real desaparece, restando apenas retalhos fragmentados de uma realidade desprovida de raiz no espaço e no tempo. Nada sabemos, depois de termos tido a ilusão de que fomos informados sobre tudo.
Também é interessante a inversão entre realidade e ficção produzida pela mídia. Acabamos de mencionar o modo como o noticiário nos apresenta um mundo irreal, sem História, sem causas nem conseqüências, descontínuo e fragmentado. Em contrapartida, as novelas criam o sentimento de realidade. Elas o fazem usando três procedimentos principais:
1. o tempo dos acontecimentos novelísticos é lento para dar a ilusão de que, a cada capítulo, passou-se apenas um dia de nossa vida, ou passaram-se algumas horas, tais como realmente passariam se fôssemos nós a viver os acontecimentos narrados;
2. os personagens, seus hábitos, sua linguagem, suas casas, suas roupas, seus objetos são apresentados com o máximo de realismo possível, de modo a impedir que tenhamos distância diante deles (ao contrário do cinema e do teatro, que suscitam em nós o sentimento de proximidade justamente porque nos fazem experimentar o da distância);
3. como conseqüência, a novela nos aparece como relato do real, enquanto o noticiário nos aparece como irreal. Basta ver, por exemplo, a reação de cidades inteiras quando uma personagem da novela morre (as pessoas choram, querem ir ao enterro, ficam de luto) e a falta de reação das pessoas diante de chacinas reais, apresentadas nos noticiários.
Vale a pena, também, mencionar dois outros efeitos que a mídia produz em nossas mentes: a dispersão da atenção e a infantilização.
Para atender aos interesses econômicos dos patrocinadores, a mídia divide a programação em blocos que duram de sete a dez minutos, cada bloco sendo interrompido pelos comerciais. Essa divisão do tempo nos leva a concentrar a atenção durante os sete ou dez minutos de programa e a desconcentrá-la durante as pausas para a publicidade.
Pouco a pouco, isso se torna um hábito. Artistas de teatro afirmam que, durante um espetáculo, sentem o público ficar desatento a cada sete minutos. Professores observam que seus alunos perdem a atenção a cada dez minutos e só voltam a se concentrar após uma pausa que dão a si mesmos, como se dividissem a aula em “programa” e “comercial”.
Ora, um dos resultados dessa mudança mental transparece quando criança e jovem tentam ler um livro: não conseguem ler mais do que sete a dez minutos de cada vez, não conseguem suportar a ausência de imagens e ilustrações no texto, não suportam a idéia de precisar ler “um livro inteiro”. A atenção e a concentração, a capacidade de abstração intelectual e de exercício do pensamento foram destruídas. Como esperar que possam desejar e interessar-se pelas obras de arte e de pensamento?
Por ser um ramo da indústria cultural e, portanto, por ser fundamentalmente uma vendedora de Cultura que precisa agradar o consumidor, a mídia infantiliza. Como isso acontece? Uma pessoa (criança ou não) é infantil quando não consegue suportar a distância temporal entre seu desejo e a satisfação dele. A criança é infantil justamente porque para ela o intervalo entre o desejo e a satisfação é intolerável (por isso a criança pequenina chora tanto).
Ora, o que faz a mídia? Promete e oferece gratificação instantânea. Como o consegue? Criando em nós os desejos e oferecendo produtos (publicidade e programação) para satisfazê-los. O ouvinte que gira o dial do aparelho de rádio continuamente e o telespectador que muda continuamente de canal o fazem porque sabem que, em algum lugar, seu desejo será imediatamente satisfeito.
Além disso, como a programação se dirige ao que já sabemos e já gostamos, e como toma a cultura sob a forma de lazer e entretenimento, a mídia satisfaz imediatamente nossos desejos porque não exige de nós atenção, pensamento, reflexão, crítica, perturbação de nossa sensibilidade e de nossa fantasia. Em suma, não nos pede o que as obras de arte e de pensamento nos pedem: trabalho sensorial e mental para compreendê-las, amá-las, criticá-las, superá-las. A Cultura nos satisfaz, se tivermos paciência para compreendê-la e decifrá-la. Exige maturidade. A mídia nos satisfaz porque nada nos pede, senão que permaneçamos sempre infantis.
Um último traço da indústria cultural que merece nossa atenção é seu autoritarismo, sob a aparência de democracia. Um dos melhores exemplos encontra-se nos programas de aconselhamento. Um especialista – é sempre um especialista – nos ensina a viver, um outro nos ensina a criar os filhos, outro nos ensina a fazer sexo, e assim vão se sucedendo especialistas que nos ensinam a ter um corpo juvenil e saudável, boas maneiras, jardinagem, meditação espiritual, enfim, não há um único aspecto de nossa existência que deixe de ser ensinado por um especialista competente.
Em princípio, seria absurdo e injusto considerar tais ensinamentos como autoritários. Pelo contrário, deveríamos considerá-los uma forma de democratizar e sociabilizar conhecimentos. Onde se encontra o lado autoritário desse tipo de programação (no rádio e na televisão) e de publicação (no caso de jornais, revistas e livros)? No fato de que funcionam como intimidação social.
De fato, como a mídia nos infantiliza, diminui nossa atenção e capacidade de pensamento, inverte realidade e ficção e promete, por meio da publicidade, colocar a felicidade imediatamente ao alcance de nossas mãos, transforma-nos num público dócil e passivo. Uma vez que nos tornamos dóceis e passivos, os programas de aconselhamento, longe de divulgar informações (como parece ser a intenção generosa dos especialistas) torna-se um processo de inculcação de valores, hábitos, comportamentos e idéias, pois não estamos preparados para pensar, avaliar e julgar o que vemos, ouvimos e lemos. Por isso, ficamos intimidados, isto é, passamos a considerar que nada sabemos, que somos incompetentes para viver e agir se não seguirmos a autoridade competente do especialista.
Dessa maneira, um conjunto de programas e publicações que poderiam ter verdadeiro significado cultural tornam-se o contrário da Cultura e de sua democratização, pois se dirigem a um público transformado em massa inculta, desinformada e passiva.
Cinema e televisão
Como a televisão, o cinema é uma indústria. Como ela, depende de investimentos, mercados, propaganda. Como ela, preocupa-se com o lucro, a moda, o consumo.
No entanto, independentemente da boa ou má qualidade dos filmes, o cinema difere da televisão em um aspecto fundamental.
A televisão é um meio técnico de comunicação à distância, que empresta do jornalismo a idéia de reportagem e notícia, da literatura, a idéia do folhetim novelesco, do teatro, a idéia de relação com um público presente, e do cinema, os procedimentos com imagens. Do ponto de vista do receptor, o aparelho televisor é um eletrodoméstico, como o liquidificador ou a geladeira.
O cinema é a forma contemporânea da arte: a da imagem sonora em movimento. Nele, a câmera capta uma sociedade complexa, múltipla e diferenciada, combinando de maneira totalmente nova, música, dança, literatura, escultura, pintura, arquitetura, história e, pelos efeitos especiais, criando realidades novas, insólitas, numa imaginação plástica infinita que só tem correspondência nos sonhos.
Como o livro, o cinema tem o poder extraordinário, próprio da obra de arte, de tornar presente o ausente, próximo o distante, distante o próximo, entrecruzando realidade e irrealidade, verdade e fantasia, reflexão e devaneio.
Nele, a criatividade do diretor e a expressividade dramática ou cômica do intérprete pode manifestar-se e oferecer-se plenamente ao público, sem distinção étnica, sexual, religiosa ou social.
Apesar dos pesares, Benjamin tinha razão ao considerar o cinema a arte democrática do nosso tempo.